Portugal de novo condenado por violação da liberdade de expressão

Justiça portuguesa foi mais uma vez posta em causa pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos no caso de um jornalista e de um médico acusados e condenados por difamação.

Portugal voltou a ser condenado este mês pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e de novo a causa foi a “violação da liberdade de expressão” por parte dos tribunais portugueses. Nos últimos 15 anos Portugal já foi condenado pelo mesmo crime por mais de 20 vezes, sendo por isso um dos recordistas europeus no que toca ao número de condenações por violação da liberdade de expressão.

Numa nota divulgada nesta terça-feira, o TEDH informa que a decisão de condenar Portugal foi unânime e que já não existe possibilidade de recurso. Deste modo, o Estado português terá de pagar cerca de 30 mil euros por prejuízos materiais decorrentes das sentenças proferidas pela justiça contra o jornalista do semanário regional O Mirante Joaquim Emídio e o médico Gomes da Cruz.

São dois casos independentes, mas que coincidem no modo como o crime de difamação é interpretado pelos tribunais nacionais. Devido a um artigo de opinião publicado no semanário de Santarém, Joaquim Emídio foi condenado, em 2012, a pagar 2500 euros de indemnização a Rui Barreiro, ex-secretário de Estado da Agricultura e Florestas do último Governo de José Sócrates. Também por causa de um artigo publicado na imprensa local, o médico Gomes da Cruz viu-se condenado a pagar cerca de 22 mil euros ao presidente da Câmara Municipal da Lourinhã, o socialista João Anastácio de Carvalho.

No caso do jornalista Joaquim Emídio, a justiça entendeu que praticou um “crime de difamação agravada” por ter chamado “idiota” ao então secretário de Estado Rui Barreiro, num artigo que publicou em Março de 2011 com o título Só ficaram as galinhas. “Chama-se Rui Barreiro, é o mais idiota dos políticos que conheço (…) É certo e sabido que um dia será ministro das Finanças, ou da Educação, ou da Justiça de um qualquer Governo, a confiar no aparelho partidário do Partido Socialista, onde parece que toda a gente boa foi de férias e só ficaram as galinhas”, escreveu então aquele jornalista.

O governante apresentou queixa e o Tribunal Judicial de Santarém condenou-o por “difamação agravada”, uma sentença que foi depois confirmada pela Relação de Evora. Na decisão judicial a condenação é defendida deste modo: “Ao actuar de forma escrita, isto é, ao referir-se ao ofendido/assistente, que exercia as funções de Secretário de Estado, com o termo idiota, no contexto em que o fez e desacompanhado de qualquer referência à sua concreta actuação política ou outra, que consubstanciasse tal afirmação, o arguido sabia que ofendia a honra e consideração” de Rui Barreiro.

Já o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos vê as coisas de outro modo. Na decisão em que condena o Estado português defende, entre outros vectores, que o uso do termo “idiota” não configura “um ataque pessoal contra Rui Barreiro, devendo antes ser lido no contexto de uma situação política” na qual estas afirmações se revestem de “interesse público”, devendo por isso ser objecto, por parte dos tribunais, de “um elevado nível de protecção”. Para o TEDH, “tendo em conta o interesse da sociedade democrática em assegurar e manter a liberdade de imprensa”, a condenação de que Joaquim Emídio foi alvo “não é proporcional ao objectivo legítimo” visado pelo texto em causa, configurando deste modo uma violação do artigo 10 (defesa da liberdade de expressão) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Visão “obsoleta"
O processo contra o médico Gomes da Cruz também teve origem numa queixa apresentada por um socialista. No caso, o ainda presidente da Câmara Municipal da Lourinhã João Anastácio de Carvalho. Num artigo publicado por um jornal local, Gomes da Cruz pôs em causa a decisão do autarca de excluir a sua clínica das consultas que estavam a ser feitas pela câmara com vista à adjudicação de um serviço de medicina no trabalho, evocando nomeadamente a “falta de carácter e honestidade” do autarca e também a sua “cobardia”.

Foi suficiente para que o Tribunal da Lourinhã condenasse o médico por “duas ofensas de difamação e por “insultar uma entidade legal”, devendo por isso pagar uma indemnização a João Anastácio de Carvalho. Na sua decisão, o TEDH começa por frisar que “a condenação por insulto a uma entidade legal não está prevista na lei, uma vez que a legislação portuguesa remete apenas para ‘factos não verdadeiros’, não abarcando juízos de valor”.

“Só esta conclusão é suficiente para se constatar que houve uma violação do artigo 10.º”, adianta o TEDH, que, contudo, decidiu ir mais longe na sua análise, o que levou a estas conclusões: o artigo de Gomes da Cruz é do “interesse legítimo geral e contribuiu para o debate público”; o interesse pessoal do autarca em proteger a sua protecção “não se sobrepõe ao direito à liberdade de expressão”; o texto do médico Gomes da Cruz “continha factos suficientes para apoiar as suas declarações”.

Juntando tudo isto, o TEDH entende também que o tribunal português “excedeu os limites da sua margem de apreciação, no que respeita às restrições que podem ser colocadas a debates que se revestem de interesse público, e não procedeu ao exercício de equilíbrio que era necessário para respeitar os critérios decorrentes” da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

O TEDH considera que tem “fortes razões” para fazer substituir os pontos de vista do tribunal português pelas conclusões a que chegou na análise deste caso, não subsistindo dúvidas de que “houve uma violação do artigo 10.”

Num relatório elaborado em 2015, International Press Institute (IPI) alertou que a lei portuguesa tem normas de criminalização da difamação que são “obsoletas” e não cumprem os actuais padrões internacionais sobre a liberdade de expressão – que inclui a liberdade de opinião e a de informar e ser informado.

Fonte: Público