Partidos preocupados com proposta da UE que é “ataque inaceitável” às mensagens privadas dos cidadãos

Proposta recuperada pela presidência dinamarquesa do Conselho da UE gera receios de "vigilância em massa" da população. Receios também já chegaram ao Parlamento português.

Chega, Iniciativa Liberal, PS, Livre e Bloco de Esquerda estão em diferentes alas do espetro político, mas têm uma preocupação em comum: uma proposta que está a ser discutida no seio da União Europeia que, de acordo com os mais críticos, “abre caminho à vigilância massiva e quebra a segurança das mensagens”, ameaçando a privacidade dos cidadãos.

Nas últimas semanas, estes cinco partidos apresentaram projetos de resolução na Assembleia da República sobre o tema, a maioria para recomendar ao Governo português que se manifeste contra a medida (o do PS não rejeita liminarmente a medida, pedindo antes várias garantias). O debate do projeto dos liberais está marcado para a manhã desta sexta-feira, 19 de setembro. Mas o que está concretamente em causa?


Conhecida por “Chat Control 2.0”, a proposta que estará em discussão no Conselho da União Europeia — e cujo texto final ainda não é público — visa combater o abuso sexual de crianças e a pornografia infantil. O grande receio é que esse combate seja feito à custa da privacidade e segurança das mensagens privadas, mesmo as encriptadas, como é o caso do WhatsApp. A proposta não é nova e já em 2022 tinha estado em discussão.

A ideia central passaria por obrigar as empresas de serviços digitais — como aplicações de mensagens, redes sociais e plataformas de partilha de ficheiros — a monitorizar passivamente as comunicações privadas dos utilizadores, tais como mensagens de texto, fotografias, vídeos e até conteúdos enviados através de aplicações encriptadas como o WhatsApp, o Signal ou o iMessage. Na prática, significaria que todas as mensagens enviadas por qualquer cidadão da União Europeia seriam inspecionadas por sistemas automáticos baseados em inteligência artificial (IA), que procurariam identificar conteúdos suspeitos. Caso houvesse uma deteção, a informação seria comunicada às autoridades.

Ao ECO, Jorge Miguel Teixeira, deputado da Iniciativa Liberal, não poupa críticas à iniciativa, que considera “um ataque inaceitável à encriptação das mensagens”, independentemente das boas intenções. Para o liberal, a medida é “claramente desproporcional face aos objetivos que se propõe atingir”, já que obrigaria todas as plataformas de mensagens a realizar “um escrutínio automatizado de todas as comunicações”, expondo os utilizadores “a riscos de falsos positivos e de vigilância massificada”.

Segundo o deputado, está previsto que o escrutínio das mensagens privadas seja feito por IA, mas lembra que “a IA é capaz de alucinar” (produzir declarações falsas com a máxima convicção), recordando situações em que algoritmos bloqueiam indevidamente utilizadores nas redes sociais. Assim, mesmo reconhecendo a importância da proteção de menores, “a medida cria um precedente perigoso, abrindo a porta a futuras violações de privacidade em contextos como terrorismo ou discurso de ódio, dependendo do governo ou da conjuntura política”, defende o parlamentar liberal.

O caminho para um verdadeiro combate à exploração sexual de menores, insiste, passa por “uma ação coordenada da polícia e da justiça, com medidas proporcionais e controladas”. Nesse sentido, apela ao Governo para que “não acompanhe esta iniciativa”, reforçando que existe “margem política para rejeitar a proposta” e que Portugal não estaria sozinho na defesa das liberdades digitais. “Muitos deputados, tanto do PS como do PSD, não estão confortáveis com estas iniciativas; a esquerda mais à esquerda também não gosta. Portanto, acho que é preciso, de facto, um consenso social”, conclui.

Dos cinco partidos que já apresentaram projetos de resolução que rejeitam categoricamente a vigilância massiva para combater os crimes sexuais contra crianças, o do PS visa recomendar ao Governo que “assegure que qualquer medida de deteção, denúncia ou supressão de conteúdos seja sempre precedida de mandado judicial, obedeça a critérios de equilíbrio e proporcionalidade e especifique disposições para casos de suspeita concreta relativamente aos quais exista suspeita razoável de envolvimento em crimes de abuso sexual de crianças”.

Além das posições assumidas pelos partidos políticos, também vários movimentos cívicos e organizações da sociedade civil têm manifestado oposição ao “Chat Control 2.0”. A Associação D3 – Defesa dos Direitos Digitais, por exemplo, tem alertado para os riscos que a proposta representa para a privacidade e a liberdade dos cidadãos. A campanha contra a medida faz-se também no portal ChatControl.pt, criado no âmbito da campanha “Não me escutes as conversas”, que reúne informação e apelos contra a proposta, incluindo uma petição pública.

A associação internacional Internet Society também tem publicado comunicados críticos, afirmando que a medida compromete a encriptação de ponta a ponta e coloca em causa a segurança das comunicações digitais na União Europeia.

Governo sem posição oficial conhecida
Enquanto isso, o Governo ainda não assumiu uma posição oficial sobre o “Chat Control”. Em 2022, quando a Iniciativa Liberal apresentou na Assembleia da República um primeiro projeto de resolução a recomendar que Portugal se opusesse à proposta, o PSD optou pela abstenção, enquanto o PS, então no Governo, foi o único partido a votar contra.

O eurodeputado do PSD e membro da Comissão LIBE no Parlamento Europeu, Paulo Cunha, prefere não antecipar a decisão final do partido, mas defende que “o mais importante, no final, é a proteção das crianças”. “Não se trata de estar cegamente a favor ou contra: trata-se de garantir que o texto final seja eficaz na proteção das crianças, mas juridicamente sólido e proporcionado, evitando violações do direito à privacidade e ao sigilo das comunicações, também estes direitos fundamentais”, afirma ao ECO.

Paulo Cunha frisa que “a proteção das crianças é absoluta”, mas alerta que “a utilização de ordens de deteção demasiado amplas ou o recurso a tecnologias de análise prévia de mensagens encriptadas podem pôr em causa direitos constitucionais”. Sublinha, por isso, a necessidade de equilíbrio: “No passado já se excluiu a encriptação deste tipo de propostas. Em 2023, o Parlamento Europeu aprovou, com apoio tanto do PPE (Partido Popular Europeu), como dos socialistas e dos liberais, uma posição que exclui as comunicações encriptadas do escopo desta proposta”, recorda.

Apesar de reconhecer a complexidade do tema, o eurodeputado estabelece uma linha vermelha clara. “Nunca deveríamos aceitar medidas de vigilância total e indiscriminada. Aceitaremos medidas dirigidas, proporcionais e controladas judicialmente, com a óbvia independência e separação de poderes salvaguardada. Se a Comissão ultrapassasse essa linha, coisa que não acredito, jamais teria o aval do Parlamento Europeu”, finaliza.

Prioridade máxima no combate ao abuso sexual de crianças
Apesar do nervosismo que a intenção da proposta tem estado a provocar em várias franjas da sociedade civil, a medida final ainda não está fechada nem sequer o seu teor é conhecido (o documento que tem estado a circular é uma alegada versão preliminar obtida pelo jornal alemão Netzpolitik.org). Por isso, ainda pode — e provavelmente vai — ser alvo de alterações.

Mesmo assim, a intenção de focar este tema está bem explícita no programa da presidência rotativa do Conselho da União Europeia, que atualmente pertence à Dinamarca. No documento, lê-se que “a presidência dará alta prioridade ao trabalho sobre o Regulamento e a Diretiva relativos ao Abuso Sexual de Crianças”, o que demonstra o empenho do país nórdico em combater este tipo de problema.

Também a ministra dinamarquesa da Digitalização, Caroline Stage Olsen, sublinhou essa intenção logo após a Dinamarca assumir a presidência rotativa da UE, afirmando: “Vou usar a presidência para colocar este tema no topo da agenda e definir uma ambição política clara, capaz de moldar a política da União Europeia nos próximos anos.”

Para o dia 14 de outubro de 2025 está agendada uma reunião do Conselho onde deverá ser discutida a proposta, de acordo com o eurodeputado esloveno Branko Grims, do PPE, um de vários eurodeputados que enviaram questões sobre o tema à Comissão Europeia. O sentido de voto de um alguns países será mais determinante do que o de outros, pois no Conselho da União Europeia a votação não se realiza simplesmente por maioria simples, tendo em conta a população de cada Estado-membro. Por isso, Alemanha, França, Itália ou Espanha serão países particularmente importantes para definir o futuro da medida.

Antiga comissária sueca na origem do “Chat Control”
Ylva Johansson, comissária europeia dos Assuntos Internos entre 2019 e 2024, assumiu como missão pessoal combater o abuso sexual infantil online. Em 2022, foi quem apresentou a proposta de regulamento europeu conhecida como “Chat Control”.

A comissária sueca tem consciência da controvérsia em torno do projeto, sobretudo porque envolve serviços de mensagens encriptadas. Mesmo assim, mostrou-se determinada em defendê-lo. Em entrevista à Wired, em maio de 2023, afirmou: “Acho que tenho uma obrigação moral de agir. Se não o fizer, quem sou eu? Serei um ratinho. Serei nada”, sublinhando que a sua proposta era uma questão de responsabilidade ética, mais do que apenas técnica ou política.

Para Ylva Johansson, o debate não deve centrar-se apenas na privacidade dos utilizadores, mas também nas vítimas de abusos cujas imagens circulam online. Na mesma entrevista, insistiu que a sociedade precisa de pensar também nessas crianças e que, para ela, não agir seria equivalente a ignorar o sofrimento delas.

Apesar das críticas intensas de organizações de direitos digitais, empresas de tecnologia e ativistas da privacidade, Johansson continuou a apresentar o projeto como “a minha proposta” e afirmou que a União Europeia tem o dever de proteger os mais vulneráveis, mesmo num terreno complexo como o da encriptação.

Fonte: Eco
Foto: PetaPixel