Crianças e jovens aliciados por “firmas” criminosas. Delinquência juvenil e grupal continua a subir

O mais exaustivo retrato sobre a criminalidade jovem, concluído no âmbito da Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta, revela uma realidade perturbadora sobre o que falha e é preciso mudar para prevenir este descaminho. 64 crianças com menos de 12 anos integraram gangues.

É nossa responsabilidade impedir que os nossos jovens sejam capturados pelos gangues” - estas palavras da ex-secretária de Estado da Administração Interna, Isabel Oneto, serviram tanto de inspiração, como de motor, para o trabalho sem precedentes desenvolvido pela Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta (CAIDJCV), que Oneto coordenou, criada em reação à escalada de criminalidade a envolver gangues juvenis, um fenómeno que tem causado especial alarme público desde 2021. Em vez da simplista resposta securitária, o Governo escolheu juntar todas as entidades e especialistas, e ouvir até o que os jovens tinham a dizer sobre um sistema que não consegue impedir que sejam “capturados pelos gangues”.

Segundo o relatório final a que o DN teve acesso, e foi esta quarta-feira publicado na página da internet do Ministério da Administração Interna, foram feitas “audições setoriais que abrangeram 100 entidades distintas e 163 profissionais/especialistas e jovens, a realização de 12 entrevistas a jovens a cumprir medida de internamento em centro educativo, e seus familiares, oito audições em plenário envolvendo 17 especialistas, e, ainda, análises bibliográfica e estatística de dados provenientes de diversas fontes”.

O novo Governo vai ter uma base de trabalho que nenhum outro teve para enfrentar este fenómeno. Os problemas foram exaustivamente identificados em todas as áreas de intervenção, com base em testemunhos de todos os profissionais que conhecem e acompanham estes jovens e que, em nome do Estado, devem e querem cuidar de os colocar num caminho sem crimes. E não há tempo a perder.

As estatísticas, ainda provisórias (os números definitivos só vão estar disponíveis no Relatório Anual de Segurança Interna, cuja publicação ainda não foi anunciada), indicam que em 2023 foram registadas pelas Forças de Segurança 18 406 ocorrências de Delinquência Juvenil - crimes cometidos por jovens com idades entre os 12 e os 16 anos - o que corresponde a um aumento de 8,2% face a 2022.

A Criminalidade Grupal - crimes praticados por três ou mais suspeitos, independentemente da idade - acompanhou esta tendência de crescimento: 6757 ocorrências, um quantitativo que corresponde a uma subida de 14,8% em relação ao ano anterior.

Menos homicídios consumados e tentados
Ainda assim, é salientado neste documento, “apesar dos aumentos verificados em 2019, 2022 e 2023 ao nível da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Grupal os quantitativos em 2023 são claramente inferiores” aos registados até 2015 (inclusive), no primeiro caso, e até 2012 (inclusive) no segundo.

Como atenuante desta escalada geral de casos, os números da Polícia Judiciária (PJ) indicam que, no que diz respeito aos crimes mais violentos, nomeadamente homicídios tentados e consumados tendo jovens como autores, depois dos números assustadores de 2022 , os valores voltaram aos dos anos anteriores. Um levantamento da Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo - a maior da PJ - demonstra que em 2023 se verificaram nove casos de homicídios tentados e nenhum consumado em contexto grupal/juvenil, enquanto em 2022 se haviam verificado 24 (21 tentados e 3 consumados). “Se em 2022 o peso dos homicídios tentados e consumados sucedidos no contexto grupal/juvenil no volume global de casos de era de 18% , em 2023 o seu peso diminuiu para 6%”, é escrito.

A CAIDJCV conseguiu aprofundar a análise dos dados do ano de 2022, tendo concluído que nesse ano, cerca de 25% das ocorrências de Criminalidade Grupal “envolveram pelo menos uma criança/jovem com idades entre os 12 e os 20/21 anos, o que correspondeu a 2704 crianças/jovens envolvidos, dos quais 903 entre os 12 e 15/16 anos, e 29 com menos de 12 anos”.

Estes dados representam um aumento muito significativo das ocorrências em relação a 2019 (ano pré-pandemia), designadamente ao nível daquelas que envolveram menores entre os 12 e os 15/16 anos (+73% na GNR e +6,5% na PSP).

Também neste ano, os 7756 inquéritos tutelares educativos (ITE) - para menores de 16 anos - iniciados representaram um aumento de 9% face a 2019, representando o maior valor observado desde 2015. Em 2023 continuou a verificar-se um incremento no número de ITE (7333 até 13/11/2023, o que reflete um aumento de 11% face ao período homólogo de 2022).

Ainda em relação a 2022, os crimes pelos quais mais jovens entre os16 e 20 anos foram condenados foram: condução sem habilitação legal, roubo/violência, furto qualificado, ofensa à integridade física simples/qualificada e tráfico de quantidades diminutas/menor gravidade/consumo de drogas.

Uma caracterização/perfil feita aos jovens a cumprir pena em estabelecimentos prisionais revela, por exemplo, que em mais de metade das ocorrências houve “emprego de tortura física, psicológica ou financeira ou ameaças de morte à vítima ou familiares” e que foi “empregue violência de forma “gratuita” ou provocado dano deliberadamente à propriedade, além do que seria necessário para cometer o crime”.

“Quando são ‘apanhados’ já é tarde”
Mas este relatório não se resume a números e é nas descrições de testemunhos dos muitos profissionais no terreno que foram ouvidos que nos deparamos com a mais crua realidade.

“Foi abordada a existência das designadas ‘firmas’ (termo usado pelos jovens para indicar grupos criminosos coordenados por adultos que apresentam um nível de organização similar ao de uma ‘empresa’, fornecendo muitas vezes alojamento, alimentação aos jovens), e que se constituem como fortes componentes de aliciamento dos jovens (quer prévio, quer aquando da reintegração, após saída de um Centro Educativo)”, é escrito.

No relato, que surge anónimo, é sublinhado que “muitas vezes estas organizações estão associadas à Criminalidade Grupal e com recurso ao meio digital, fatores a ter em conta nas intervenções”.

Foi ainda reportado por especialistas o seguinte: “Os jovens estão atualmente mais ‘duros’, “quando são ‘apanhados’ já é tarde; poderia ser mais eficaz se os jovens fossem detetados mais cedo”; “firmas dão estatuto, existem papéis diferenciados”; “mais difícil atualmente ‘chegar’ aos jovens e trabalhar com eles, maior dificuldade de vinculação ao adulto, dificuldade de aceitação da autoridade, muito pouco disciplinados”; “jovens entregues a si próprios, mães trabalham muito, pares dão-lhes a relevância necessi- tada”; “importante dar apoio às famílias e aos jovens para evitar-se chegar à sinalização”; “maior parte vai à escola, mas não vai às aulas”; “chegam cada vez mais novos ao Centro Educativo exigem outras aptidões por parte dos técnicos”; “importante dar mais atenção ao meio digital”; “falta de afeto - situação base é esta, falta de afeto e carinho”; “jovens em Centro Educativo são os jovens em que tudo falhou… o que marca estes jovens no seu percurso é o abandono… múltiplas falhas, em múltiplos contextos…não existe uma intervenção sistémica e sistematizada sobre estes jovens…intervenção tardia… não há um diagnóstico global e integrado…”.

Mais suspeitos de crimes com menos de 12 anos
De salientar que, com os dados já analisados de 10 meses de 2023, o número de crianças com menos de 12 anos envolvidas em criminalidade grupal, subiu de 29, no total do ano de 2022, para 64 (dados só diferenciados pela PSP e GNR). Para qualquer das faixas etárias, de janeiro a outubro de 2023 o número de ocorrências registadas “superou o respetivo valor para o ano completo de 2022,

Observando-se que 2023 apresenta os valores mais elevados desde 2019 (inclusive), o que indicia um aumento de ocorrências de Criminalidade Grupal envolvendo crianças e jovens, nomeadamente nos últimos quatro anos”.

Assinala a Comissão que “estes dados permitem refletir, de certo modo, a existência de uma “escalada” em termos de gravidade da violência, das ocorrências e de indicadores de vulnerabilidade social desde os jovens em AE, aos jovens em ICE, aos jovens acompanhados pelas Equipas de Reinserção Social (geralmente no contexto de uma pena de prisão suspensa na sua execução), até aos jovens em estabelecimento prisional ou com vigilância eletrónica”.

Salienta também que “a análise sobre estes diferentes grupos etários e sob medidas e penas diversas, reflete também a existência de diversos momentos no desenvolvimento dos jovens que podem constituir-se como oportunidades cruciais para a intervenção onde pode (ou não) ser efetivamente “feita a diferença”, de modo a prevenir que crianças e jovens evoluam em trajetórias desviantes e criminais”.

Algumas recomendações

> Reforçar a capacidade de deteção, sinalização e intervenção ao nível de crianças e jovens em risco nas escolas;

> Adotar as medidas necessárias, nomeadamente ao nível de recursos humanos, de modo que decisões ao nível dos inquéritos tutelares educativos (ITE) sejam tomadas em data o mais próxima possível da ocorrência dos factos;

> Prever que as Forças de Segurança sejam notificadas das decisões respeitantes a jovens que tenham sido objeto de PTE que apresentem no seu histórico residência na sua área de responsabilidade;

> Reforçar a sensibilização junto da magistratura judicial para que a suspensão de execução de pena de prisão seja cumprida recorrendo à frequência de programas que impliquem uma participação regular dos jovens condenados;


> Reforçar a capacidade de deteção, sinalização e intervenção ao nível de crianças e jovens em risco nas escolas;

> Adotar as medidas necessárias, nomeadamente ao nível de recursos humanos, de modo que decisões ao nível dos inquéritos tutelares educativos (ITE) sejam tomadas em data o mais próxima possível da ocorrência dos factos;

> Prever que as Forças de Segurança sejam notificadas das decisões respeitantes a jovens que tenham sido objeto de PTE que apresentem no seu histórico residência na sua área de responsabilidade;

> Reforçar a sensibilização junto da magistratura judicial para que a suspensão de execução de pena de prisão seja cumprida recorrendo à frequência de programas que impliquem uma participação regular dos jovens condenados;

Perfil jovens (16-21) condenados
> 95% são rapazes, sendo a idade média à data da ocorrência de 18 anos;

> Pelo menos uma ocorrência de roubo estava presente em 56% dos casos e o homicídio voluntário em 11%;

> Em 36% dos casos não houve lesões para as vítimas ou verificaram-se ferimentos ligeiros, no entanto para 15% dos casos as consequências para as vítimas foram ferimentos graves ou a morte;

> Cerca de 34% destes jovens tinham tido processo tutelar educativo (PTE) anterior;

> 53% destes jovens apresentam problemas relacionados com o consumo de droga, 15% problemas relativos ao consumo de álcool e que em quase um quinto dos casos estavam, aquando da ocorrência, sob efeito de alguma destas substâncias;

> Para alguns jovens existia informação sobre pertença a gangues/grupos juvenis organizados e violentos; mais de 50% destes jovens estiveram envolvidos (em pelo menos) uma ocorrência em que a vítima se encontrava indefesa (geralmente por via da idade avançada), houve utilização de arma ou outro instrumento perigoso;

> mais de metade das ocorrências houve “emprego de tortura física, psicológica ou financeira ou ameaças de morte à vítima ou familiares” e que foi “empregue violência de forma “gratuita” ou provocado dano deliberadamente à propriedade, além do que seria necessário para cometer o crime”.

Fonte: Diário de Notícias
Foto: Ilustração / DN