Entendimentos na justiça. Partidos terão de ultrapassar “critérios ideológicos”

O tema da reforma da justiça é transversal a toda a sociedade e deve incluir, para além de profissionais jurídicos, “pessoas que representem os clientes” deste setor, disse ao DN o advogado José Miguel Júdice, esclarecendo que os beneficiários são os cidadãos.

O ex-presidente do PSD, Rui Rio, reforçou ontem, em declarações aos jornalistas, no Porto, a ideia de que, “quanto mais largada for a reforma [da justiça], melhor”, vincando que o entendimento neste setor pode não ser suficiente se a discussão acontecer só entre PS e PSD. Ao DN, o advogado José Miguel Júdice destacou que “o tema da justiça é transversal e não pode ser definido com base nos critérios ideológicos que estão presentes nos partidos”.

Nas propostas que os partidos apresentam nos programas eleitorais, a pensar nas legislativas de 10 de março, a justiça é um dos temas mais desdobrados. Passa pela vontade de “clarificar as formas de coordenação e os poderes hierárquicos da Procuradoria-Geral da República no âmbito dos inquéritos, garantindo uniformização de procedimentos”, que conduzem à “celeridade na investigação criminal”, proposta pelo PS, e pode ir até à criminalização do “enriquecimento ilícito, em respeito pelos preceitos constitucionais”, avançada pelo PSD e acompanhada por outros partidos como o Livre e o Chega. Esta última medida não consta no programa do PS, mas é necessário lembrar que em novembro de 2021 a Assembleia da República, antes desta última maioria absoluta socialista, aprovou a criminalização do enriquecimento injustificado, que na altura alterou a legislação sobre as obrigações declarativas de políticos e altos cargos públicos.

Agora, nas vésperas de uma nova corrida às urnas, os partidos puxam para si as medidas que merecem um consenso alargado.

“Seja quem for que ganhe, seja quem for que forme a maioria, seja quem for que governe, acho que devia haver um esforço muito grande para assinar alguns aspetos do sistema jurídico e do sistema jurídico processual”, propõe José Miguel Júdice, explicando que esta ideia nem passa necessariamente por “grandes mudanças”. A “clarificação do princípio hierárquico do Ministério Público”, refere a título de exemplo”, que “está na Constituição”, está também no programa socialista. “Eu acho que é a altura de pôr ordem no Ministério Público”, sugere.

Outro dos temas que os partidos vincam nos seus programas, de uma forma ou de outra, é a celeridade nos vários processos jurídicos. No caso da Aliança Democrática (AD), a coligação pré-eleitoral entre PSD, CDS e PPM, este tema é sublinhado com a proposta de inclusão da “celeridade no artigo 20.º, da CRP [Constituição da República Portuguesa, ‘como uma das respostas exigidas ao sistema de justiça’, como ‘característica geral do sistema’”. Para concretizar este plano, a AD propõe “a criação de uma Comissão Permanente para a Reforma da Justiça (CPRJ), a funcionar preferencialmente junto da Assembleia da República”, com vista a, para além da óbvia e genérica reforma da justiça, “apresentar, num prazo máximo de três meses, uma proposta de medidas urgentes para a Jurisdição Administrativa e Fiscal, elaborada a partir de contributos já existentes” e “criar um mecanismo permanente de avaliação das pendências e celeridade processual”.

Esta é uma das propostas que José Miguel Júdice acompanha. “Acho isso uma excelente ideia, devem ter pessoas independentes, devem ter pessoas das profissões jurídicas, devem ter pessoas que representem os clientes, os consumidores da justiça”, adianta, esclarecendo que “os consumidores da justiça são, basicamente, os cidadãos. E são as empresas e são as entidades representativas.”

Uma das palavras mais esgotadas na discussão em torno da discussão da reforma jurídica é corrupção, que anda sempre de mãos dadas com a transparência ou falta dela. “Era importante que o sistema normativo fosse mais claro, porque ao meter tudo dentro de um grande alguidar, a dizer que tudo é corrupção, depois dá estas coisas que estão a acontecer”, destaca José Miguel Júdice, referindo-se ao recente caso do presidente do Governo Regional da Madeira, Miguel Albuquerque, e o ex-secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, Miguel Alves, absolvido de prevaricação (ler mais na página 5).

“É manifestamente essencial que o princípio da legalidade seja revisitado, isto é, o Ministério Público tem a obrigação de investigar tudo, mesmo aquilo que aparentemente não faz sentido nenhum”, acrescenta o advogado. “É evidente que muitas vezes não investigam, mas a ideia que serve de desculpa para certas investigações que gastam milhões de euros e no fundo não servem para nada, a não ser criar uma situação de traumatismo social”, critica antes de propor que seria “bom que se pensasse nisso a sério”. “Era bom que a luta contra a corrupção, que é essencial, tivesse também uma ideia de relação custo-benefício. Isto é, a corrupção é horrível, mas se a lesão pública foi mil euros e se gastaram um milhão para averiguar, provavelmente alguma coisa está mal”, conclui.

Nesta matéria, as propostas dos partidos abundam, com enquadramentos para o combate à corrupção e à clarificação do conceito em si, da esquerda à direita.

Na sua missiva eleitoral, o PS recorda que, “nos últimos anos, para além de inúmeras alterações à legislação processual penal e da organização judiciária”, e “após discussão pública alargada e participada”, foi criada “a primeira Estratégia Nacional Anticorrupção, para o período 2020-2024”.

Já a AD, aponta o dedo a “elevados níveis de corrupção, fragilidade das instituições e cultura de informalidade na governação e nas relações com o poder”, apesar das criação da estratégia que pretende combater o fenómeno.

Se no programa do Chega a palavra corrupção aparece em quase todos os temas, como um alvo a abater, no documento da CDU “a corrupção e a criminalidade económica e financeira” aparecem como “consequências da política de direita e da promiscuidade e subordinação do poder político ao poder económico e encontram terreno fértil para o seu florescimento nos negócios das privatizações, das PPP [parcerias público-privadas] e noutras formas de privilégio e favorecimento dos grandes interesses económicos e financeiros”.

Esta ideia é acompanhada de perto pelo Bloco de Esquerda que considera que “as privatizações são a corrupção da economia nacional, a entrega do que é nosso aos clientes dos liberais e dos partidos dos negócios”.
No que diz respeito ao Livre, é necessário “criar uma agência pública independente que centralize as funções do Mecanismo Nacional Anticorrupção, da Entidade de Contas e Financiamentos Políticos e da Entidade para a Transparência”.

De uma forma ou de outras, os programas dos partidos apontam para o resultado da corrupção, que, a limite conduzem a uma melhoria do desempenho económico do país.

“O custo social do sistema que se fizer, a não funcionar ou funcionar mal, é devastador e realmente não é possível mudá-lo sem que todos falem uns com os outros”, remata José Miguel Júdice reforçando a ideia inicial de que, a reforma da justiça só se faz com todos os partidos em entendimento. “Eu acho que isso é uma boa ideia.”

Fonte: Diário de Notícias
Foto: Reinaldo Rodrigues / Global Imagens