A eutanásia - José González

§ 1. A questão da morte a pedido da vítima ocasiona a colisão entre si de, pelo menos, dois valores: o direito à vida, de um lado; a dignidade do ser humano, do outro.

Em geral, o direito à vida constitui também, simultaneamente, um dever de viver . Segundo as concepções sociais dominantes em qualquer lugar, momento e cultura , o seu titular não pode decidir pôr-lhe termo livremente nem rogar a outrem que o faça por ele . Por maioria de razão, muito menos podem terceiros deliberar acerca da continuação da vida alheia. Tanto pela perspectiva moral, como, particularmente, do ponto de vista jurídico, não se encontra justificação para que alguém beneficie da prerrogativa que autorize a colocar fim à vida alheia, seja a que título for (desde a imposição de pena de morte ao simples acto de misericórdia).

Há que considerar, em contrapartida, que a vida humana é finita e que, por isso, o seu prolongamento artificial contraria a natureza das coisas . Contudo, a simples extensão da vida não pode ser vista como um mal em si mesmo ou, em alternativa, como um objectivo impróprio. Precisamente ao invés, o desejo de perenidade é um justo anseio do ser humano. Por isso, não está em causa proibir a assistência médica passível de estender a vida para além do que seria o seu ponto normal e exclusivamente natural de duração. O que se discute são apenas os limites que se devem instituir no recurso a técnicas, métodos ou, em última análise, a terapêuticas, destinadas àquele fim.

§ 2. Faz parte componente da cultura da generalidade dos povos, a título de princípio fundamental, a negação do direito de pôr termo (voluntariamente) à própria vida mediante autorização concedida a terceiro para o efeito, seja através da chamada eutanásia activa ou passiva, seja por meio de suicídio assistido. A actuação que consume o resultado proibido não deixa de ser havida como ofensiva de um valor fundamental (o respeito pela existência), preenchendo, por isso, o tipo de legal de crime de homicídio (ainda que a respectiva responsabilidade possa ser eventualmente atenuada por via da demonstração do consentimento do lesado ou mediante a desculpabilização da conduta do agente).

Deduz-se, com base nesta asserção, que a vida humana não tem sido encarada, nas mais diversas tradições culturais, como objecto de um simples direito individual. Há justificações morais, éticas e religiosas subjacentes que legitimam a sua consideração como valor social. Parte-se do único princípio eticamente admissível: todos os indivíduos, enquanto pessoas, são preciosos e imprescindíveis à sociedade, independentemente da sua utilidade, estado de vida, idade, sexo, raça, estatuto social, etc. Por isso, a sua eliminação não pode ser determinada por ninguém , nem mesmo pelo próprio, na medida em que não pode ser ele o juiz da sua valia social. Deve, assim, recusar-se, pelo menos com carácter geral, o chamado «direito à morte» .

§ 3. A eutanásia diferencia-se, antes do mais, em não voluntária, involuntária e voluntária. No primeiro caso, retira-se a vida sem conhecimento da pessoa atingida em virtude de ela não poder manifestar a sua vontade nesse sentido, seja por não estar em condições de o fazer, seja por aquela ser juridicamente inatendível (v.g. menores ou interditos). No segundo, provoca-se a morte contra a vontade de quem juridicamente se podia pronunciar. No terceiro, o processo que a desencadeia funda-se em pedido (livre e esclarecido) daquele que dela ficará privado . A linguagem não observa, obviamente, os cânones. Do ponto de vista jurídico, as locuções não voluntária e involuntária equivalem. Por isso, melhor ficaria enquadrar todas as suas modalidades sob a mesma designação, subdistinguindo posteriormente as respectivas espécies. De todo o modo, até que a eutanásia a pedido possa constituir causa de exclusão da ilicitude, todas as suas classes preenchem o tipo legal de crime de homicídio.

Em qualquer caso, ela poderá ser activa ou passiva: a primeira (causing death) dá-se quando se apela a recursos que colocarão fim à vida de certa pessoa (injecção letal, medicamentos em dose excessiva, etc.); a segunda (letting die) verifica-se quando o óbito ocorre por falta de provimento dos recursos necessários para a manutenção das funções vitais (falta de água, alimentos, fármacos ou cuidados médicos). Mas deixar morrer também pode decorrer, por exemplo, da administração de certos cuidados paliativos ou da interrupção ou da não continuação de certa terapêutica. Para todos os efeitos, já não é de eutanásia que aqui se trata, pese embora (ao menos de acordo com as concepções actuais) as acções/inacções que lhes subjazem não se mostrem necessariamente ilícitas. Pode considerar-se, por exemplo, que a administração de uma overdose de morfina a título de cuidado paliativo se configura juridicamente como uma causa de exclusão da ilicitude do homicídio.

Da eutanásia distingue-se (embora, para alguns casos, a fronteira não seja transparente) o suicídio assistido . Neste, a morte não é provocada por terceiro mas sim pelo próprio (do latim sui, «próprio», e caedere, «matar»). Mas o resultado só é susceptível de ser obtido mediante a colaboração de outrem, o qual, para o efeito, deve ser havido como cúmplice.

§ 4. A locução eutanásia provem do grego eu + thanatos, que significa “boa morte” ou morte sem dor . A ela se opõe a distanásia, do grego dis + thanatos que se pode traduzir por “má morte”, no sentido em que se produz uma actuação destinada a retardá-la o mais possível causando um sofrimento escusado ou atroz (o que equivale a obstinação terapêutica). A este conceito contrapõe-se o de ortotanásia, sinónimo de morte natural, sem interferência da ciência, processo pelo qual se permite uma morte digna ao paciente, sem sofrimento, deixando que a doença siga o seu percurso espontâneo.

Tratando-se de conceitos racionalmente diferenciáveis de forma medianamente clara, torna-se muitas vezes difícil, na prática, efectuar a destrinça. Separa-se da eutanásia “a decisão de renunciar ao chamado «excesso terapêutico», ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência «renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes». Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há-de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objectivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte (Carta Encíclica Evangelium Vitae do Sumo Pontíficie João Paulo II, de 25/03/1995, n.º 65)”.

§ 5. “Could a life be so bad – so diseased or deprived – that it would not be worth living? Could a life be even worse than this? Could it be worse than nothing, or worth not living?” .

Ainda que se admita existirem situações, no limite, em que certa vida não pareça prima facie digna de ser vivida, há um ponto de partida que se afigura indisputável: mesmo que a vida de uma pessoa se revele muito penosa, árdua ou sofrida, isto não pode constituir argumento para entender que teria sido preferível não existir. E mesmo quando a pessoa suporte provações inimagináveis, se a sua vida, como um todo, merecer a pena, jamais se poderá considerar ter vivido ou viver a wrongful life.

A questão só poderá colocar-se com alguma propriedade, pois, para aqueles casos em que all things considered a vida se mostre objectivamente “not worth living” . Existirão hipóteses deste género ou, ao menos, poderão elas assim ser encaradas? Morrer novo, viver, desde a nascença, com cegueira ou surdez absoluta, não poder ter filhos ou nascer na condição de escravo, são deficiências ou males capazes, só por si, de tornarem a vida não merecedora de ser vivida?

A vida com deficiência severa é, por simples confronto, certamente pior do que aquela que dela esteja isenta. A deficiência grave é um mal em si mesmo. Mas o que é ou no que consiste uma deficiência de tal ordem ? E all things considered poderá dizer-se que aquela vida não é digna de ser vivida?

De um modo geral, a vida imperfeita apenas permite asseverar que “if my mother had conceived a diferent child, that would have been better. And this need not imply that I ought rationally to regret that my mother had me, or that she ought rationally to regret this. If she loves me, her actual handicapped child, this is enough to block the claim that she is irrational if she does not have such regret” .

§ 6. É inquestionável que uma vida que mereça ser vivida será melhor do que a não existência. Mas, ao invés, a vida “not worth living” será também preferível à não existência?

O problema põe-se, antes do mais, na definição de fronteiras. A vida da pessoa idosa que sofra de uma doença terminal muito dolorosa vale mais ou menos do que a vida da pessoa jovem que se encontre em estado vegetativo permanente? A vida do escravo vale mais ou menos do que a da criança livre que padeça de atroz doença física ou mental?

E, por outro lado: quem decidirá acerca do que se considera “worth living”? O próprio? Mas, se assim for, então quando v.g. alguém impede outrem de cometer suicídio iminente estará a actuar erradamente e poderá por este ser responsabilizado? E se a um terceiro for concedida aquela competência, quem será a pessoa ou entidade com legitimidade suficiente para tal ? Prevenindo dilemas e questões deste género, a doutrina católica liquida o problema à partida, considerando simplesmente inaceitável que à vida humana se dê termo por causas não naturais .

Deve, portanto, assentar-se neste ponto: inexistindo pedido da vítima não se pode falar em eutanásia. Quem define o que é a “boa morte” há-de ser o próprio e nunca terceiro. Sob pena de, não se vendo assim, todos sermos passíveis de eutanásia involuntária: primeiro, os doentes incuráveis; depois, os deficientes mentais profundos; depois, os idosos em geral; depois, os desempregados de longa duração; depois, os inúteis em geral; depois, por fim, os infelizes. E como ninguém consegue a felicidade por inteiro, em última análise seremos todos elimináveis por esta via.

§ 7. O ponto de partida é: “If any particular person had not been conceived when he was in fact conceived, it is in fact true that he would never have existed” .

Suponha-se que um casal está a projectar ter filhos. Se ela ficar grávida agora, é antecipável que irá conceber uma criança capaz de sofrer de uma doença penosa. Mas se esperarem alguns meses para engravidar, a criança que nascer dela não padecerá . O casal opta, apesar de tudo, pela gravidez imediata . A criança beneficia, em geral, de uma boa vida, apesar da sua doença, ainda que ela se revele pior do que seria a do outro ser que teria nascido se os pais tivessem escolhido aguardar mais algum tempo. Parece que os pais agiram, por isso, de forma censurável em virtude de terem infligido um dano à criança. Comparando a existência com a não existência, poder-se-á concluir que, ainda assim, aquela traduz mais benefícios do que esta. All things considered, a criança estará em melhor situação enquanto ser vivo, não obstante a (menos feliz) decisão dos pais. Mas também será imaginável entender, ao invés, que a não existência se teria tornado preferível para o novo ser. A questão que envolve comparações deste género tem sido identificada como the non-identity problem.

Na maioria dos casos desta ordem, no entanto, e all things considered, a vida merece inequivocamente ser vivida. O problema somente tem significado, portanto, a partir do instante em que seja possível afirmar a entrada no campo do “not worth living”.

Ainda que se admita existirem vidas nessa condição – porque o critério é essencialmente subjectivo – permanece um problema quando se pretenda estender a ideia à justificação da eutanásia. Uma vez que o ser humano não é de geração espontânea, a que título se pode conceder a alguém o direito de saída quando, à partida, a pessoa não dispõe do direito de entrada? Numa sala de cinema, por exemplo, qualquer espectador a pode abandonar quando lhe aprouver na medida em que, também quando entender, tem o direito de entrar (e, portanto, o de não entrar). Mas a decisão – se decisão for – de nascer não é tomada por cada um de nós. Não importa se alguém a toma. Importa apenas que ela não nos pertence. Por conseguinte, que fundamento será possível invocar para conceder a cada indivíduo o poder de deliberar acerca da sua subsistência?

§ 8. Um outro ponto apresenta-se inquestionável: quando se valora a vida de uma pessoa para determinar se é digna de ser vivida considera-se apenas ela própria e não qualquer espécie de comparação com outras (de distintas pessoas) com melhores vidas ou com vidas “normais”. É que, caso contrário, todas as vidas anómalas ou de pior qualidade se revelariam “not worth living”.

Não se pode demonstrar que existir seja melhor do que não existir. Mas o nosso mundo é feito para os vivos. Os falecidos dele não fazem parte. É em relação à pessoa viva que se há-de averiguar se sofreu um mal ou se conquistou algum bem. O que seja bom ou mau afere-se em relação a um sujeito existente. O inexistente é o nada. Não é sujeito e, portanto, não adquire bens dos vivos nem padece dos seus males.

O critério de decisão, todavia, quando se encara o que antecede para efeitos de eutanásia, é o do próprio sujeito. Daí que ela se não conceba faltando a competente petição ou, ao menos, o assentimento da vítima. Acolher a eutanásia involuntária é admitir que um terceiro, movido por propósitos talvez meritórios ou talvez não, adquira o poder de decidir acerca da continuação da via alheia. O que se afigura particularmente perturbante quando se trate de eutanásia activa.

José González