Caso Freeport começa a ser julgado, defesa afirma que acusação é "ridícula"


A tarefa da acusação não vai ser fácil. Mas a defesa vai ter muito que explicar. Quase oito anos depois do início de uma das mais mediáticas investigações judiciais realizadas em Portugal, inicia-se nesta quinta-feira, às 9h30, no Barreiro, o julgamento do caso Freeport.

No banco dos réus vão sentar-se os empresários Charles Smith (nascido na Escócia) e Manuel Pedro, acusados pelo Ministério Público, em Julho de 2010, da prática do crime de extorsão na forma tentada. Nos termos da acusação, os arguidos "pretenderam" que os administradores da sociedade promotora do centro comercial Freeport, em Alcochete, lhes entregassem "quantias de valor consideravelmente elevado", sob a ameaça de que sem elas os licenciamentos necessários à concretização do seu projecto não seriam aprovados.

O valor total das verbas alegadamente exigidas, mas de cujo pagamento não foram obtidas provas, não é indicado pela acusação, embora sejam apontadas diversas quantias solicitadas à empresa inglesa Freeport entre 2001 e 2003. Entre essas quantias avultam os dois milhões de libras (perto de 2,4 milhões de euros) que Charles Smith terá exigido em Dezembro de 2001. Tal verba destinar-se-ia a satisfazer um pedido, "vindo directamente dos ministros", para evitar o chumbo do projecto então em apreciação no Ministério do Ambiente dirigido por José Sócrates.

Para lá desta quantia, os arguidos – cuja empresa, a Smith & Pedro, tinha sido contratada pela Freeport para tratar de todo o processo de licenciamento em Portugal – terão pedido por várias vezes quantias na ordem das dezenas de milhares de euros, alegando que elas se destinavam a pagar a pessoas cuja influência era essencial para conseguir a aprovação do centro comercial.

Juízes em exclusividade

O colectivo de juízes que vai julgar Charles Smith e Manuel Pedro é presidido por Afonso Andrade e integra ainda Amélia Batalha e Cláudia Roque. As 24 audiências marcadas até 10 de Maio decorrerão à razão de duas e três por semana no Tribunal do Barreiro, porque o do Montijo, a cujo 3.º juízo pertence o processo, não tem as condições adequadas.

A pedido do tribunal, e dada a dimensão do processo, o Conselho Superior da Magistratura atribuiu ao colectivo o regime de exclusividade. Em princípio o julgamento devia ter começado na segunda-feira e prosseguido na terça com as declarações dos arguidos, mas estas audiências foram anuladas devido ao facto de Smith e Pedro terem informado o tribunal de que não pretendem falar por agora. A acusação arrolou 43 testemunhas, dez das quais inglesas, e a defesa três. Entre as primeiras está o tio de Sócrates, Júlio Monteiro, e o ex-secretário de Estado do Ambiente Rui Gonçalves.

Na contestação há dias entregue, Charles Smith e Manuel Pedro, através da advogada Paula Lourenço, afirmam que é "completamente falsa" a acusação relativa à exigência dos dois milhões de libras, mas dizem reservar para as audiências o esclarecimento do caso.

Já quanto aos restantes pedidos de dinheiro dirigidos à Freeport, a defesa argumenta que todos eles se prendem com a remuneração do trabalho dos arguidos, tal como foi negociada nos três contratos celebrados entre as partes, e com o pagamento de trabalhos efectuados por técnicos por eles contratados. Por vezes, a contestação tenta justificar os termos equívocos, ou cifrados, usados nos pedidos de dinheiro com as diferenças culturais entre a Inglaterra e Portugal, mas o sentido de parte dessas expressões vai certamente exigir muitas explicações.

Pinocchio e Bernardo

É o caso do email em que Charles Smith fala em pedir 80 mil libras à Freeport para "pagar Pinocchio" [que diz ser o seu contabilista], conforme combinado com "Bernardo". Ou daquele em que diz a um dos administradores ingleses: "Tenho as pessoas sob controlo à força desta transferência (...) que me permite pressionar no sítio certo para conseguir aquilo que precisamos logo que possível." Ou ainda de um outro em que lhe salienta: "Estou preocupado que o protocolo não seja assinado até eu poder dizer ao gordo que foi feita uma transferência. Não estou a falar de pagamento."

De qualquer modo, a estratégia da defesa passa por afirmar que "a tese de extorsão é infantil e infundada", até porque a Freeport não só nunca se queixou de ser "extorquida", como convidou Manuel Pedro para a administração de uma das suas filiais em Portugal após a aprovação do projecto e fez pagamentos à Smith & Pedro até 2008. "Porém, o Ministério Público, muito mais papista que o Papa, quer à viva força que a Freeport se sinta extorquida", lê-se na contestação.Noutro passo, os arguidos negam não ter emitido facturas e pago impostos sobre os cerca de 695 mil euros recebidos pela Smith & Pedro em 2002 e 2003 e afirmam que "só por má-fé" o Ministério Público pode insistir em algo que "se sabe ser falso", mas "dá jeito na estapafúrdia construção jurídica arquitectada para acusar os arguidos".

Também classificada pela defesa como "um monumental erro jurídico", a acusação conclui afirmando que "os arguidos pretenderam que os administradores da Freeport, perante a iminência de a empresa sofrer elevados prejuízos com a eventual não aprovação do projecto, tendo em conta o elevado investimento que já havia sido feito pela empresa, lhes entregassem as quantias de valor consideravelmente elevado supra-referidas".

No decurso da investigação do caso "não se apurou que a administração da Freeport tivesse cedido às suas pretensões e entregue as quantias por eles solicitadas", mas isso "ficou a dever-se exclusivamente a motivos alheios às suas vontades", sublinha o Ministério Público.

Na audiência de hoje, que deverá ter uma sessão de manhã e outra à tarde, está prevista a inquirição de Francisco Ferreira (dirigente da Quercus), Fernanda Guerreiro (funcionária da direcção regional do Ambiente), Mónica Mendes (ex-funcionária da Smith & Pedro) e Paulo Perloiro (gerente do gabinete de arquitectura Promontório). Os arguidos não falarão por enquanto.

Público