Constitucional vs. Governo: Lei da Nacionalidade passa no essencial, concluem constitucionalistas
É vetada a polémica perda de nacionalidade para quem comete crimes com pena de prisão superior a quatro anos, mas mantêm-se os prazos mais alargados para a obtenção de cidadania portuguesa.
Quatro normas da Lei da Nacionalidade foram declaradas inconstitucionais, mas, “no essencial”, os juízes do Palácio de Ratton deixaram passar o diploma que alarga os prazos para obtenção da cidadania portuguesa, concluem vários constitucionalistas consultados pelo ECO.
Agora, o Presidente da República “terá de vetar o diploma e devolvê-lo à Assembleia da República, que pode com a mesma maioria de direita confirmar a lei”, apesar do veredicto do Tribunal Constitucional (TC), explica ao ECO o constitucionalista Jorge Pereira da Silva.
Ainda assim, o chefe do Estado pode voltar a chumbar a lei e enviá-la novamente para o TC, adiando assim a entrada em vigor do texto legal para finais de janeiro ou fevereiro, alerta José Moreira da Silva. O perito em Direito Fundamental refere, no entanto, que as normas declaradas inconstitucionais “não minam o essencial da lei”, que acabou por ser validada pelos juízes.
“Mesmo sem as normas inconstitucionais, o Governo conseguirá levar a cabo o essencial da reforma que pretendia”, alinha pelo mesmo diapasão o constitucionalista Tiago Duarte. A norma que alarga os prazos para pedir a nacionalidade portuguesa de cinco para 10 anos (para estrangeiros de todos os países) e para sete anos (para cidadãos dos países de língua oficial portuguesa e para cidadãos da União Europeia) passou pelo crivo do TC, exemplifica José Moreira da Silva.
“As soluções fundamentais constantes das alterações legislativas aprovadas ficaram intactas depois da decisão do TC, dado que a fiscalização solicitada incidiu sobre aspetos laterais e de direito transitório, e apenas considerou inconstitucionais metade das normas objeto de apreciação”, considera Jorge Bacelar Gouveia.
Outras normas que foram declaradas inconstitucionais como a perda de nacionalidade para quem cometa crimes com pena de prisão superior a quatro anos serão “facilmente ultrapassáveis”.
“O próprio TC deu pistas sobre como é possível contornar essa inconstitucionalidade”, considera Moreira da Silva. “Por exemplo, é possível colocar como condição a não prática de crimes para a verificação da correspondência com a sociedade portuguesa em vez do mecanismo ser automático de perda de nacionalidade”, esclarece. “O problema aqui está na automaticidade, porque tem de haver uma apreciação casuística”, acrescenta.
No mesmo sentido, Tiago Duarte considera que o Governo, designadamente os partidos que o sustentam no Parlamento (PSD e CDS), podem “‘salvar’ algumas das normas inconstitucionais se as reformular, no caso em que o TC considerou que as normas eram pouco determinadas/densas e mesmo no caso em que entendeu que crimes ‘pouco graves’ não deviam poder impedir acesso à nacionalidade“.
De resto, a maioria de direita que aprovou a lei poderá voltar a confirmar o voto, ultrapassando assim o veto do TC, assinala Moreira da Silva, ainda que PSD já tenha mostrado abertura para fazer alguns ajustes ao diploma. Resta saber se o Chega vai acompanhar essas mudanças, abdicando de bandeiras como a perda de nacionalidade para quem comete crimes.
O Tribunal Constitucional (TC) declarou inconstitucionais quatro normas relativas à lei da nacionalidade, três das quais por unanimidade, tendo a quarta merecido apenas o voto contra de um dos juízes. E considerou igualmente inconstitucionais as alterações ao Código Penal.
Uma das normas vetada pelos juízes do Palácio Ratton é a relativa ao efeito automático da lei no acesso à cidadania portuguesa por quem for condenado a prática de crime com pena superior a dois anos. A alteração ao Código Penal previa a possibilidade de um juiz aplicar como pena acessória, por crimes graves, a perda da nacionalidade.
O decreto do Parlamento que revê a Lei da Nacionalidade e outro que altera o Código Penal para incluir a perda de nacionalidade como pena acessória, ambos com origem numa proposta de lei do Governo PSD/CDS-PP, foram aprovados a 28 de outubro, com 157 votos a favor, de PSD, Chega, IL, CDS-PP e JPP, e 64 votos contra, de PS, Livre, PCP, BE e PAN.
Na leitura pública destas decisões, no Palácio Ratton, em Lisboa, foi anunciado que houve unanimidade relativamente a três das quatro normas do decreto que revê a Lei da Nacionalidade declaradas inconstitucionais, bem como quanto às normas do decreto que cria perda de nacionalidade como pena acessória. Em causa a violação do princípio da igualdade e da proporcionalidade.
Quais foram as normas declaradas inconstitucionais?
- A norma que impede o efeito automático da lei do acesso à cidadania por quem tenha sido condenado por um crime com pena de dois anos de prisão — o tribunal decidiu em linha com jurisprudência anterior que há uma restrição desproporcional ao acesso à cidadania e uma perda acessória de direitos civis ou políticos. Ao impedir a possibilidade de aferir em que medida uma tal condenação põe em causa o específico vínculo de integração na comunidade portuguesa, o Tribunal Constitucional decidiu estarem violados os artigos 26.o, n.o 1, em conjugação com o 18.o, n.o 2 e 30.o, n.o 4, todos da Constituição (restrição desproporcional do direito fundamental de acesso à cidadania e violação, também, da norma constitucional que estatui «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos»).
- A norma que o decreto visa introduzir no artigo 12.º-B, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, que estabelece que a consolidação da nacionalidade não opera, quanto a titulares de boa-fé, nas situações de manifesta fraude. O Tribunal Constitucional decidiu que, ao não oferecer qualquer critério de distinção entre as situações de obtenção por fraude (em que já opera a consolidação da nacionalidade) e de fraude manifesta (em que a consolidação deixa de operar), ocorre violação do princípio da determinabilidade e da reserva absoluta de lei parlamentar, que se extrai da conjugação do artigo 2.º com a alínea f) do n.º 1 do artigo 164.º da Constituição;
- A norma que estabelece que os pedidos dependem da data da autorização de residência e não do seu pedido — viola o “pedido de proteção de confiança” por defraudar expectativas legítimas. O Tribunal Constitucional concluiu ocorrer violação do princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição, por afrontar as legítimas expectativas dos destinatários com procedimentos pendentes na aplicabilidade do regime existente na data da apresentação do pedido.
- A norma que possibilita o cancelamento da nacionalidade por comportamentos que rejeitem a adesão à comunidade nacional e seus símbolos pela “inexistência de indicação” sobre o tipo de comportamentos de que se está a falar. O Tribunal Constitucional decidiu que a inexistência de qualquer indicação sobre a tipologia ou padrão de comportamentos que possam ser suscetíveis de preencher aquele conceito impossibilita que os cidadãos possam antecipar, com um mínimo de segurança, quais os tipos de ações cuja prática pode ser motivo bastante para que, contra si, seja intentada uma ação de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa. Viola-se, assim, o princípio da determinabilidade e da reserva absoluta de lei parlamentar, que se extrai da conjugação do artigo 2.º com a alínea f) do n.º 1 do artigo 164.º da Constituição.
Fonte: Eco
Foto: Nuno Ferreira Santos