Viciação de processos. Ministra põe leis na gaveta e assume que não as vai regulamentar

Publicadas há um ano, as duas leis que introduziram mecanismos de controlo na distribuição eletrónica dos processos nos tribunais judiciais, administrativos e fiscais, tinham 30 dias para ser regulamentadas. O PS tinha votado contra e agora a Ministra anuncia que "está a trabalhar em alterações". "O mercadejar da Justiça é do mais vil que se pode imaginar", diz o PSD.

Em plena instrução do caso designado por "Operação Lex", em que juízes (ex-presidentes do Tribunal de Relação de Lisboa) foram acusados de terem viciado a distribuição de processos para favorecer arguidos, entre os quais outros magistrados, a ministra da Justiça anunciou que não vai regulamentar duas leis, aprovadas na Assembleia e já publicadas em Diário da República (D.R.) há mais de um ano, cujo objetivo era, precisamente, prevenir essas situações de manipulação dos sorteios.

"O Ministério considera que há aqui um espaço para melhorar esta forma de o fazer. Portanto, está a trabalhar numa alteração que virá propor ao parlamento", assumiu Catarina Sarmento e Castro no parlamento em resposta a uma perplexa deputada Mónica Quintela, coordenadora para a Justiça do Grupo Parlamentar (GP) do PSD.

Contactado pelo DN, o gabinete da Ministra confirmou a intenção: "Considerando os objetivos visados pelas alterações legais e as concretas soluções nela previstas, o Governo tem estado a avaliar a oportunidade de revisitar algumas soluções vertidas na lei, reforçando a efetiva transparência do procedimento de distribuição eletrónica de processos que se pretendeu promover e na qual o atual Governo efetivamente se revê".

Acrescentou ainda que "o Governo continua, assim, a trabalhar afincadamente no sentido de implementar, o quanto antes, os mecanismos reforçados de controlo da distribuição eletrónica dos processos judiciais, considerados essenciais para a promoção da transparência e da credibilidade do sistema de justiça".

Fiabilidade do sistema em causa
Tratam-se das leis 55/2021 de 13 de agosto e 56/2021 de 16 de agosto, resultantes de projetos do PSD, que introduzem, respetivamente, mecanismos de controlo da distribuição eletrónica dos processos judiciais e nos processos da jurisdição administrativa e fiscal. Foram aprovadas em agosto do ano passado por todos os partidos, menos pelo PS que votou contra (à exceção do ex-deputado José Magalhães, que foi a favor), promulgadas pelo Presidente da República, publicadas em D.R. nesse mesmo mês e em vigor desde outubro de 2021.

Questionada também a Presidência da República sobre qual era o entendimento de Marcelo Rebelo de Sousa acerca de leis por si promulgadas que não são regulamentadas, Belém não respondeu a tempo do fecho desta edição.

Entre outros procedimentos, estas leis obrigam a que todos os juízes sejam incluídos na lista a sortear (o que nem sempre acontecia); presença obrigatória do Ministério Público; "sempre que possível" a presença de um representante da Ordem dos Advogados (na primeira instância) e sempre que as partes o queiram, o mandatário judicial nos tribunais superiores; bem como a obrigação de documentar em ata as operações de distribuição".

Na exposição de motivos da sua proposta, o GP social-democrata, numa reação natural ao escândalo que tinha abalado a Justiça e que veio a ser o centro da "Operação Lex", escrevia: "A fiabilidade do sistema de distribuição eletrónica dos processos judiciais tem sido, nos últimos tempos e em mais do que uma instância, posta em causa, por possibilitar a manipulação dos sorteios dos processos, o que não só é grave, pois põe em causa o respeito pelo princípio do juiz natural, como abala fortemente a confiança dos cidadãos na justiça por permitir que se escolha um magistrado para decidir determinado processo", escrevia.

Os diplomas tinham 30 dias para serem regulamentados e a anterior ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, chegou a a assinar um despacho, nesse prazo, para iniciar esse processo, indicando o atual secretário de Estado da Justiça, Jorge Costa (na altura diretor-geral da Administração da Justiça) para coordenar o procedimento. Mas nada aconteceu.

Ministra "conivente" com práticas à margem da lei
Todos estes passos foram lembrados por Mónica Quintela, na audição de Catarina Sarmento e Castro no parlamento, na passada segunda-feira. "De que está à espera senhora Ministra?", questionou, lembrando que "o mercadejar da Justiça é do mais vil que se pode imaginar".

Ao DN, Quintela classificou de "muito grave" o anúncio da titular da pasta da Justiça. "Este é o cerne da Operação Lex, ou seja, o sistema, como está, permite que sejam escolhidos os juízes que se queiram para determinados processos. Mesmo na distribuição eletrónica. É muito grave e a Ministra da Justiça disse, que não vai regulamentar as leis aprovadas na Assembleia da República e que vai apresentar uma proposta diferente! É inédito um ministro dizer que se recusa a regulamentar leis aprovadas na Assembleia da República. É horrível o que está a acontecer! Mesmo com a Operação Lex em curso e com todos os problemas públicos oriundos na distribuição de processos na Operação Marquês".

Na sua intervenção, a abrir a audição parlamentar, Mónica Quintela, recordou ainda o recente inquérito da Rede Europeia de Conselhos de Justiça, no qual 26% dos 494 juízes portugueses questionados, disseram acreditar que, durante os últimos três anos, houve juízes a aceitar, a título individual, subornos ou a envolverem-se em outras formas de corrupção; e 27% concordou que houve distribuição de processos a juízes à revelia das regras ou dos procedimentos.

"A Sra. Ministra tem sido conivente com a manutenção destas práticas ao não regulamentar a lei. A manutenção deste estado de coisas propicia atos corruptivos e é contra a lei expressa aprovada nesta casa. A Sra. Ministra é publicamente responsável por todos os processos que não estão a ser entregues conforme aquilo que foi aqui aprovado", salientou.

Fonte: Diário de Notícias
Foto: Miguel A. Lopes / Lusa