Tancos. Chumbo da Lei dos metadados provoca novo rombo na Justiça

O processo do assalto ao paiol de armas de Tancos é a mais recente "vítima" da interpretação dos tribunais sobre o acórdão do Tribunal Constitucional a proibir a conservação de metadados para a investigação criminal.

Todos os factos provados na investigação do assalto aos paióis de Tancos com base dos metadados das comunicações dos arguidos - e que contribuíram em janeiro de 2022 à condenação de 11 dos 23 acusados - foram considerados ilegais pelo Tribunal da Relação de Évora.

A sustentar a decisão dos juízes desembargadores está o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) de abril do ano passado (três meses depois da sentença de primeira instância) que veio proibir que as operadoras conservassem os dados das comunicações para fins de investigação criminal e impedir a utilização destes, ao abrigo de uma legislação específica (Lei 32/2008), pelas autoridades.

No início de fevereiro, numa entrevista à rádio Observador, o diretor nacional adjunto da PJ, procurador João Melo, estava convencido que o acórdão do TC não afetaria esta decisão condenatória, porque estes metadados não tinham sido obtidos através da legislação chumbada, mas por via das escutas telefónicas.

Mas os juízes concluíram que, "não sendo permitida a utilização de prova obtida por metadados, não resta senão concluir que a factualidade considerada como provada" em vários pontos se encontra "irremediavelmente afetada e que deve ser reequacionada, expurgando-se, na formação da convicção do Tribunal, o que possa ser resultante de prova obtida por metadados".

Depois do caso da jovem Luana, desaparecida durante oito meses sem que o Ministério Público (MP) fosse autorizado pelo tribunal de instrução a aceder aos dados da localização do seu telemóvel; e do bombeiro acusado de ter ateado 18 incêndios ter sido ilibado porque o tribunal não aceitou os metadados que davam a sua localização nos locais dos crimes; o impacto do acórdão do TC atinge agora um dos mais mediáticos processos de sempre - uma investigação a um assalto e a um embuste criado por polícias (Polícia Judiciária Militar e GNR) - que levou à demissão de um ministro da Defesa (acusado e absolvido) e mereceu uma comissão parlamentar de inquérito.

Na prática, o processo terá de ser reescrito sem a utilização destes metadados, que serviram para reconstituir boa parte dos percursos e localização dos arguidos, colocando-os nos locais dos crimes. A esperança dos advogados dos condenados é que isso leve à sua absolvição. "Alguns crimes pelos quais foram condenados podem cair e algumas condenações baixarem", diz, em declarações ao Público, Melo Alves é advogado do principal arguido que confessou o assalto e está condenado a oito anos de cadeia, aguardando em liberdade o desfecho judicial.

Interpretações "erradas"
Esse não é no entanto o entendimento de fontes judiciais que acompanharam o caso, ouvidas pelo DN: "As provas vão muito para além dos metadados. Apesar de terem sido úteis para demonstrar a localização e percursos dos arguidos, as condenações tiveram também por base muita prova produzida no julgamento, incluindo várias confissões que foram feitas".

Depois de vários procuradores terem e investigadores terem antecipado um "terramoto" na Justiça, quando foi conhecido o acórdão do TC e de recearem que "milhares" de processos viessem a ser anulados se tivessem de ser expurgados das provas obtidas através dos metadados, não está ainda feito um balanço sobre o real impacto desta decisão.

Um estudo recente feito pelo procurador Rui Cardoso, ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, com base em sete acórdãos publicados, em que também foram considerados nulos os metadados, demonstra que os juízes não estão apenas a considerar os metadados pedidos ao abrigo da lei 32/2008, declarada inconstitucional, mas aplicam o mesmo princípio a todos.

Em entrevista ao DN, na passada segunda-feira, o magistrado sublinha que "os problemas que este acórdão causou na investigação e julgamento de muitos crimes, e por isso na proteção das suas vítimas, que têm sido constantemente noticiados, foram agravados por uma leitura errada que desse acórdão tem sido feita por muitos tribunais, quer na primeira instância, quer nas Relações. Dele estão a retirar conclusões que o TC manifestamente não tira e que são até contrárias à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia".

Recorda que "os metadados de comunicações podem ser obtidos de muitas formas, inclusive com interceções telefónicas".

Ora, segundo garantiu na referida entrevista João Melo, que foi também titular do inquérito a Tancos quando estava no DCIAP, "não se coloca a questão da inconstitucionalidade da lei 32/2008 no caso de Tancos. Pela simples razão de que todos os metadados e todas as intromissões nas comunicações foram feitos ao abrigo do Código de Processo Penal". "A quebra do sigilo das comunicações foram devidamente autorizadas pelo um juiz de instrução criminal", assinalou. Logo, não foi invocada a lei dos metadados para ter acesso a tal informação.

Na entrevista à rádio Observador, João Melo recordou que os metadados, obtidos através da autorização judicial para a "quebra de sigilo das comunicações" (escutas) permitiu uma prova crucial para a investigação à encenação da descoberta do material de guerra roubado, que tinha sido arquitetada pela PJM / GNR, em acordo com os assaltantes. Um suposto telefonema anónimo a indicar a localização do material, veio a revelar-se ter sido feito por um sargento da PJM, combinado com a hierarquia.

"Para descobrir o percurso que os suspeitos tinham feito na véspera para ensaiar a entrega das armas [na Chamusca], nomeadamente através do tal telefonema anónimo, tivemos acesso à informação das antenas das operadoras de telecomunicações e vimos às 3h/4h/5h onde eles estavam, nomeadamente em zonas recônditas onde os suspeitos eram as únicas pessoas que estavam a circular", recordou este dirigente da PJ.

Ao final da tarde desta terça-feira, o presidente do Conselho Superior de Magistratura (CSM) considerava que a questão dos metadados "é muito preocupante" e que "há devia ter sido resolvida pelo poder executivo". "Isto preocupa-nos a todos. O que os juízes querem é que seja feita justiça e que a verdade material se sobreponha a tudo o resto, o que é muito difícil a maior parte das vezes. Mas esta questão não está na alçada nem do CSM nem dos juízes. Tem que ser o poder executivo, o poder legislativo a resolver isto", disse Henrique Araújo, o juiz conselheiro que preside ao CSM. O governo apresentou uma proposta de lei em maio de 2022, mas ainda não foi aprovada na Assembleia da República.

Perguntas & respostas: um filme do antes, durante e depois do roubo
O que é o caso?
Na origem do caso está um assalto aos paióis nacionais de Tancos, de onde foram levados vários artigos de material de guerra, como munições de calibre 9mm, lança-granadas e explosivos, por exemplo. O roubo foi planeado durante um ano, tendo o assaltado acontecido na noite de 27 de junho de 2017. O furto do material só foi detetado a meio da tarde do dia seguinte, quando sentinelas faziam uma ronda móvel e detetaram fechaduras arrombadas em duas das instalações.

Quem esteve envolvido no assalto?
Ao todo, o grupo de assaltantes era composto por nove pessoas: João Paulino (ex-fuzileiro e líder do grupo), António José Laranginha (com alegadas ligações ao tráfico de estupefacientes e de armas), João Pais (amigo de João Paulino, referenciado pelo Ministério Público [MP] por tráfico de armas), Gabriel Moreira, Fernando Santos (amigo e sócio de João Paulino), Valter Abreu (referenciado por tráfico de haxixe), Hugo Santos (dono da carrinha que transportou o grupo), Filipe Sousa (segundo-furriel do Regimento de Engenharia 1, que informou o grupo sobre falhas de segurança) e Paulo Lemos (não foi parte ativa no assalto, mas indicou o material a usar).

Qual o filme dos acontecimentos?
Dias depois do assalto, o jornal El Español divulga a lista de material furtado; o Exército confirma. A 30 de junho, a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna (SSI), Helena Fazenda, convoca para o final do dia uma reunião da Unidade de Coordenação Antiterrorista (UCAT), com os chefes máximos das polícias. Participam também magistrados e o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Pina Monteiro. Surgem as primeiras teses sobre o assalto: envolvimento de grupos de crime organizado, ligado ao tráfico de armas e terrorismo. Não é aumentado o grau de ameaça à segurança.
Dias depois, a 4 de julho, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o então ministro da Defesa, José Azeredo Lopes, visitam os paióis de Tancos. Numa declaração, Marcelo afirma que "tudo tem de ser apurado, doa a quem doer". A Procuradoria-Geral da República anuncia que há uma investigação em curso comandada pela Polícia Judiciária (PJ) em cooperação com a Polícia Judiciária Militar (PJM). A 10 de setembro, José Azeredo Lopes admite que "no limite, pode não ter havido furto", uma vez que não havia provas de que o material em falta tinha sido roubado. "Por absurdo, podemos admitir que o material já não existisse e tivesse sido anunciado... e isso não pode acontecer", afirma então.

Como foi encontrado o material?
A 30 de agosto de 2017, João Paulino, cabecilha do assalto, ter-se-á encontrado em Albufeira com Bruno Ataíde, militar da GNR de Loulé. O objetivo? Começar a planear a entrega das armas, uma vez que a PJ começava a apertar o cerco e o impacto mediático impedia que os assaltantes vendessem as armas. O sargento Lima Santos, ex-comandante do núcleo de investigação criminal da GNR de Loulé, é informado e contacta Mário Lage de Carvalho, sargento da PJM. Segundo o despacho do MP em que constitui arguido o então ministro da Defesa, Azeredo Lopes terá sido informado de que existiam negociações com um informador - à revelia do MP e da PJ - para a recuperação do material.
A 17 de outubro, o sargento Lima Santos, Bruno Ataíde e João Paulino encontram-se em Tomar e vão ao restaurante que era da avó de João Paulino buscar o material, que ali tinham enterrado aquando do assalto. O grupo utilizou depois uma carrinha da PJM para levar o material para um terreno baldio na zona da Chamusca, a cerca de 25 quilómetros de Tancos. Descarregadas as armas e é feito um telefonema anónimo - combinado com a PJM - a dar início à recuperação encenada do material roubado meses antes.
As armas são apreendidas no dia seguinte pela PJM em cooperação com a GNR de Loulé, que, disse a PJM na altura, se encontrava ali. Foi este fator que levantou dúvidas e que esclareceu todo o assalto: a PJM referiu que tinha recebido um telefonema anónimo e que, por acaso, os militares da GNR estavam ali, no âmbito de outro processo, e por isso foi-lhes pedido apoio. A então Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, liga a Azeredo Lopes, dando conta da clandestinidade da operação.

O que se seguiu?
Dias depois de serem recuperadas as armas, o então diretor da PJM, Luís Vieira, vai com o Major Vasco Brazão ao gabinete do ministro da Defesa, que não estava. É entregue um memorando e uma cronologia ao chefe de gabinete, o general Martins Pereira. Essa carta foi depois apreendida pelo MP, existindo no documento pedidos de agradecimento e louvor aos militares da GNR e da polícia que integraram a investigação. Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna, concorda; Azeredo Lopes idem. O texto é explícito em relação ao objetivo da PJM: "Ao contrário de outras investigações, a PJ não nos passou a perna."
Rovisco Duarte, Chefe do Estado-Maior do Exército, revela, no final do mês que há uma "discrepância" entre aquilo que tinha saído do paiol e o material recuperado: "Existe uma caixa a mais [de petardos], que não constava da relação inicial". Sabe-se, já em julho de 2018, que o material em falta era (bastante) mais: 1450 munições de 9 mm, 30 cargas de explosivos - usadas para explosões cirúrgicas e controladas -, três granadas ofensivas, duas granadas de gás lacrimogéneo e um disparador de descompressão.

E depois da recuperação?
Em setembro de 2018, é iniciada a Operação Húbris, onde o MP e a PJ detêm sete militares da PJM e da GNR suspeitos de terem sido parte ativa na recuperação encenada e, também, de conivência com o autor do roubo.
O Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decreta prisão preventiva para o diretor da PJM, Luís Vieira, e para João Paulino. Os outros seis militares ficam sujeitos a termo de identidade e residência. Vasco Brazão regressa dias depois a Portugal vindo de uma missão militar na República Centro-Africana, e é detido para interrogatório. No final da investigação, foram constituídos 23 arguidos, incluindo Azeredo Lopes.

Qual o desfecho do julgamento?
A sentença foi conhecida a 7 de janeiro de 2022. Dos 23 arguidos, 11 foram condenados (só três a pena de prisão efetiva, incluindo João Paulino). Azeredo Lopes foi absolvido. O major Vasco Brazão foi condenado a cinco anos de prisão com pena suspensa. Esta decisão foi contestada em recurso tendo o Tribunal da Relação de Évora decidido anular o acórdão.

Fonte: Diário de Notícias
Foto: Carlos Alberto / Global Imagens