Direitos dos animais na Constituição: da polémica decisão do TC ao futuro da lei

A lei que criminaliza os maus-tratos a animais levantou dúvidas. Depois de cinco decisões do Tribunal Constitucional, esta lei, aprovada em 2014, pode estar em risco. A SIC Notícias falou com Jorge Bacelar Gouveia sobre o papel da revisão Constitucional no futuro deste diploma.

Oito anos depois de terem sido aprovadas, as leis que criminalizam os maus-tratos e o abandono de animais de companhia voltam a ganhar destaque mediático. E não por bons motivos: o Tribunal Constitucional voltou a emitir uma declaração de inconstitucionalidade no recurso a um julgamento por maus-tratos em Leiria. Por que razão o Palácio Ratton considera a lei inconstitucional? E que papel poderá ter a revisão constitucional nesta matéria?

O dono do pitbull, que morreu, em 2021, devido a um prolapso intestinal grave por falta de cuidados veterinários e higiene, foi julgado no Tribunal de Leiria, tendo sido ilibado na primeira instância. O Tribunal de Leiria considerou que, à luz da Constituição, não tinha havido crime. O caso chegou ao Tribunal Constitucional (TC), confirmou a inconstitucionalidade da lei num acórdão que contou com votos a favor de três dos cinco juízes conselheiros de secção.

Em causa está o artigo 387.º, um dos mais recentes a ser aditado no código penal. Foi aprovado em 2014 e determina que, “quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia” ou “infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos a um animal de companhia” é punido com uma pena prisão que poderá ir até dois anos. Na mesma alteração, foi incluído o artigo 388.º que descreve o crime de abandono de animais de companhia e o pune com “pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias”.

As decisões do TC são controversas – mesmo dentro do Palácio Ratton. Do lado de fora, um grupo de 47 juristas assinou um manifesto intitulado “A tutela penal dos animais não é inconstitucional”, publicada no Jornal Expresso no passado dia 29 de novembro, onde criticam a decisão de inconstitucionalidade e sublinham que a proteção animal está patente nas leis comunitárias internacionais.

Foi criada também uma petição – que soma mais de 4.000 assinaturas – onde é pedido ao Presidente da Assembleia da República que se “aprove a inclusão explícita e inequívoca da proteção dos animais não-humanos na Constituição da República Portuguesa”.

Outros casos considerados inconstitucionais pelo TC
O caso do pitbull é o mais recente recurso a ser rejeitado pelo TC, mas não o único. No caso da “cadela Pantufa”, o dono do animal – que a esventrou enquanto estava prenha e a deixou em agonia durante vários dias, colocando as crias vivas no lixo – também viu a sua pena ser retirada devido à inconstitucionalidade da lei. A mesma decisão foi tomada para o caso do dono de uma cadela que a atou com uma corda ao pescoço a um carro, em 2017, e para o proprietário de um cão que foi esfaqueado em Ponta Delgada, Açores, em 2019.

Tendo a lei sido aprovada em 2014, por que razão o TC considera as leis que criaram dois crimes de proteção animal como inconstitucionais?

Uma vez que não existe “referência na Constituição aos direitos animais”, o TC entende que “pode haver outro tipo de proteções” – tais como contraordenações ou multas –, mas considera que “criminalizar práticas contra os animais é uma medida excessiva, desproporcionada e que viola o princípio da intervenção mínima”, inscrito no direito penal.

Até agora, foram emitidas três decisões sumárias e dois acórdãos. Nos vários casos em que foi chamado a intervir, os juízes do Palácio Ratton pronunciaram-se sobre processos concretos, não sobre a lei geral aprovada em 2014. Por essa razão, a lei continua em vigor e não foi declarada inconstitucional.

O Ministério Público poderá pedir a revisão da lei, que será analisada pelo plenário dos 13 juízes que analise a lei e emita uma declaração com força obrigatória geral. Nestes casos, os juízes do Palácio Ratton poderão decidir se lei é ou não constitucional: se for, mantém-se no código penal e não voltará a ser questionada; se não for, esta lei “desaparecerá por completo da ordem jurídica”, esclarece Bacelar Gouveia. A posição dos magistrados perante esta lei não é conhecida publicamente.

Segundo o Expresso, o Ministério Público não vai avançar com o pedido, para já, uma vez que ainda não existem três decisões do TC sobre exatamente as mesmas normas. Contactado pela SIC Notícias, o Tribunal Constitucional confirma que, até esta terça-feira, “não entrou nenhum pedido para o plenário de fixação de jurisprudência”.

Com a revisão Constitucional, o que se pode esperar?
Há uma forma de evitar que a lei de criminalização de maus-tratos e abandono de animais seja considerada inconstitucional: através da revisão Constitucional. Mas poderá não chegar a tempo.

A inclusão dos animais na Constituição faz parte nos projetos de revisão Constitucional entregues por vários partidos – nomeadamente nos do PAN, do Bloco de Esquerda, do Chega e também do PS. Contudo, não é mencionada na proposta apresentada pelo PSD. Ao Expresso, Fernando Negrão, deputado social-democrata, considera que “o problema tem de ser resolvido através da lei ordinária e do Código Penal”, acrescentando que, se assim não for, corre-se o risco de a Constituição vir a parecer “uma Bíblia”.

Uma vez que processo de revisão necessita de dois terços dos deputados para aprovar a votação de cada proposta, a posição do PSD ganha especial relevância. Isto porque, para atingir os dois terços (pelo menos 154 deputados), a votação tem de contar obrigatoriamente com o voto a favorável do PS e do PSD. Num cenário em que apenas o PSD vote contra, faltaria um deputado para atingir uma maioria necessária. A Iniciativa Liberal, o PCP e o Livre também não se manifestaram sobre o assunto.

Imaginando um cenário em que o PS e o PSD se juntam para incluir a proteção animal na Constituição, a aprovação do documento terá de acontecer antes que a lei seja declarada inconstitucional com força obrigatória geral. Se o Palácio Ratton se antecipar e fizer desaparecer a lei, esta terá de ser novamente apresentada na Assembleia da República e votada pelo Parlamento.

Bacelar Gouveia reconhece que a referência à proteção dos animais possa ter lugar atualmente na Constituição. Lembra que a relação que a sociedade tem uma relação de “maior proximidade” com os animais domésticos, mas sublinha que há situações mais problemáticas que não são consideradas crime.

O constitucionalista admite ter “as maiores reservas” sobre “a bondade” da lei de criminalização dos maus-tratos animais. Considera a “solução exagerada e demasiado drástica”, mas reconhece que “os animais devem ser protegidos”, não estando à mercê de “sofrimento infligido gratuitamente” nem de situações de abandonado. Bacelar Gouveia defende uma aplicação progressiva da lei: primeiro com coimas e só depois com penas de prisão.

Como foi aprovada uma lei que levanta questões de constitucionalidade?
A interpretação da lei que criminaliza os maus-tratos e o abandono de animais, à luz da Constituição, não é preta ou branca. “Às vezes, a deteção da inconstitucionalidade não é assim muito óbvia e este assunto é controverso”, afirma Bacelar Gouveia, sublinhando que este é um desses casos.

Quando foi apresentada à Assembleia da República, a lei não terá causado dúvidas aos deputados sobre a possível inconstitucionalidade. Também o Presidente da República não terá tido essa precessão, caso contrário poderia ter remetido o diploma para o TC. “À primeira vista também não me suscitava essa dúvida”, reconhece o constitucionalista, manifestando ter sido surpreendido pelas decisões.

Fonte: SIC Notícias