Discurso de António Martins, Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses

Confira, de forma completa, as palavras do Juiz Desembargador António Martins, Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, na sessão de encerramento do Congresso dos Juízes Portugueses de 2011.

"Estão ao chegar ao fim os trabalhos deste 9.º Congresso dos Juízes Portugueses e é altura de iniciar a prestação de contas da sua realização.

Permitam-me porém, antes de apresentar essas contas, que renove um agradecimento e partilhe convosco um sentimento acerca da realização deste evento.

Começo assim por renovar os meus agradecimentos, pessoais e em representação da nossa Associação, aos Conferencistas, por terem partilhado connosco as suas reflexões, as suas experiências e os seus conhecimentos, quer na área do Direito quer noutras ciências, como a Economia e as Finanças, reflexões, experiências e conhecimentos que irão constituir um activo sólido para o desempenho futuro da nossa função.

Manifesto também profundo apreço aos nossos Convidados, bem como a todos os que se dignaram associar a sua presença e participação a esta reunião magna dos juízes portugueses.

Impõe-se, ainda, transmitir o agradecimento da ASJP a todas as entidades, estrangeiras e nacionais, públicas e privadas, que deram o seu patrocínio e apoio a este Congresso, pois sem elas teria sido muito difícil realizá-lo neste espaço do território nacional. Uma referência especial ao Governo Regional, à Câmara Municipal de Ponta Delgada, à Universidade dos Açores, ao Patronato de S. Miguel e à Casa dos Açores do Norte pela hospitalidade com que nos acolheram durante estes dias, a qual ficará como uma marca histórica na ligação deste 9º Congresso dos Juízes Portugueses a este lindo arquipélago de nove ilhas.

Quanto ao sentimento acerca da realização deste 9.º Congresso – e não querendo parafrasear ninguém – só consigo exprimi-lo por uma palavra: conseguimos.

E como sabemos, os que há cerca de um ano atrás começamos a pensar em realizar aqui nos Açores este Congresso, com as dificuldades acrescidas que tal implicava, desde a distância aos custos e à incerteza da adesão dos juízes, esta não era uma missão fácil.
O mérito de a termos levado a bom porto, com a mais ampla participação de sempre de juízes num congresso é, desde logo, dos meus colegas da Direcção da Associação, mas também dos juízes dos Açores que desde o inicio aderiram entusiasticamente à ideia e, ainda, do empenho dos colaboradores da Associação. Com a compreensão dos demais, permitam-me que na perseverança do Manuel Ramos Soares, na generosidade do Filipe César Marques, na vontade do Francisco Moreira das Neves e no trabalho e paciência da nossa colaboradora Maria Teresa Gomes, personifique tal mérito, que é de todos repito(...).

Mas vamos à prestação de contas deste 9.º Congresso ou, pelo menos, a um balancete provisório, já que todos temos a esperança que a intervenção da Exmª Srª Ministra da Justiça nos faça aumentar o saldo positivo – não o défice, claro – deste evento.

Quando há cerca de um ano começamos a definir a temática deste Congresso e decidimos que ele iria decorrer sob o lema “A Mobilização do Direito no tempo das Crises”, não tínhamos dúvidas sobre a actualidade e a relevância das matérias a discutir.
A dúvida era se conseguiríamos a “mobilização” dos juízes para participarem nesta reunião magna.

Porque tínhamos a noção que nos tribunais e entre os juízes existe, cada vez mais, uma grande desmotivação. Gerada desde logo pela degradação do estatuto económico dos juízes, mas também pela desvalorização e deslegitimação da sua função jurisdicional.

Exma. Sra. Ministra da Justiça, antes de continuar quero assegurar-lhe que não serei indelicado para, depois de a termos convidado para este evento, usar da palavra para uma mera reivindicação de direitos sócio profissionais.

Mas, também não posso deixar de lhe transmitir, de forma muito clara e frontal, a preocupação dos juízes quanto à falta de conformidade ao Direito das medidas que o Estado tem vindo a adoptar, ao decidir incumprir as suas obrigações para com aqueles que têm para com ele uma relação de serviço público, e quanto às consequências dessas medidas.

Temos a noção da gravidade da condição financeira do País e da necessidade de todos suportarem os sacrifícios para a salvação da Nação, como a Direcção da ASJP tem dito várias vezes.

Mas também não temos dúvidas, como temos repetido, que esses sacrifícios devem ser repartidos entre todos os que têm capacidade contributiva, pela via do imposto universal – e não incidindo discriminatoriamente sobre aqueles que têm uma relação de serviço público com o Estado – e de forma progressiva, para que os sacrifícios sejam justos e equitativos.

Por outro lado, não é possível olvidar que há funções nucleares num Estado de Direito e uma delas é precisamente a cometida aos Tribunais e aos Juízes, ou seja, a de aplicar o Direito, com independência. Ora, não será preciso um grande exercício de análise para perceber que, a concretizar-se a projectada perda brutal dos vencimentos no OE de 2012 – somada aos cortes de 2011 são cerca de 25% em dois anos – está a colocar-se em causa, de um modo muito perigoso, aquela função nuclear do Estado.

Tal actuação ainda é menos compreensível quando, em relação a outras instituições – seguramente relevantes como é o Banco de Portugal, mas não mais do que os Tribunais – a necessidade de assegurar a independência das suas funções e um parecer do BCE parecem ser suficientes para os colocar à margem dos sacrifícios … dos especialmente sacrificados.

Impõe-se alertar para o facto de se estar a esgotar a oportunidade de ter a lucidez de perceber que o Estado não pode degradar de tal maneira o estatuto económico dos juízes – os quais estão sujeitos à mais exigente e absoluta exclusividade no exercício das suas funções – que leve os mais aptos a sair da judicatura, ou a nem sequer aceitar entrar nela, mesmo directamente para Supremos Tribunais, como juristas de mérito. Esse será um caminho para um beco sem saída, ou melhor, tendo como única saída a degradação da democracia e do Estado de Direito (o sector privado agradecerá o campo de recrutamento que aqui está a formar-se de pessoas qualificadas e que estão habituadas a tomar decisões).

Mas se a esta desmotivação, da degradação do estatuto económico, somarmos a que vem sendo gerada pela desvalorização e deslegitimação da função jurisdicional, há-de convir-se que só por um acto de fé é que seria expectável uma forte mobilização dos juízes para aceitarem o desafio que lhes era lançado, com este 9.º Congresso, o de aqui apresentarem “ideias e propostas sobre o modo como deverão situar-se e actuar nesse ambiente crítico” das crises.

A minha crença, confesso-vos que diminuta – e desde já apelo a que façam uso do ditado popular, de que “quem confessa não merece castigo” – foi largamente ultrapassada.

Na verdade, não só os juízes compareceram, de forma muito significativa neste 9.º Congresso, como participaram de um modo bem revelador do seu inconformismo e da sua vontade em querer mudar a capacidade de resposta dos Tribunais e a percepção social sobre o desempenho dos juízes.

Esta realidade levou-me a fazer um exercício de análise sobre as razões desse inconformismo e vontade e só encontrei uma explicação.
Os juízes sabem que, embora sendo a face visível do sistema de justiça e, por isso, acabando por ser responsabilizados publicamente por todas as deficiências e ineficiências do sistema de Justiça, não são os efectivos ou principais responsáveis de tais resultados e não estão mais dispostos a suportar tais injustas acusações.

Congratulo-me pois por ter aqui assistido, ao longo destes dois dias, a esta mobilização dos juízes, em três domínios ou áreas fundamentais.
Mobilização, desde logo, para uma perspectiva de autocrítica e para um apontar dos caminhos para a revalorização do papel da jurisprudência, como concretização e realização da Justiça, através da aplicação aos casos – os tais processos que “não são pessoas de papel”, como bem salientava o Colega Ramos Soares - dos princípios estruturantes do Direito.

Mobilizemo-nos pois para sermos ousados neste papel de revalorização da função jurisdicional, não tendo receio, muito pelo contrário, do “activismo judicial” neste contexto das crises, em que o juiz tem de tomar consciência do conteúdo e impacto social – mais do que nunca - das suas decisões.

Mas, também, mobilização para a assumpção do papel de liderança do juiz no Tribunal.
Não uma liderança pela mera autoridade, mas uma liderança pelo desempenho, pelo exemplo, pelos resultados, pela capacidade de se conseguir vencer a inércia – essa força mais poderosa do Universo – e a insegurança motivada pelo desconhecido. Assim conseguindo transformar a forma de estar burocrática e passiva do Tribunal numa gestão integrada e articulada entre o juiz e a secção de processos, geradora de sinergias com os demais actores do sistema de justiça, máxime os Snrs Advogados. Com reflexos extraordinários e reconhecidos na eficiência e capacidade de resposta do Tribunal, desde logo através da diminuição da pendência processual, mas também na imagem da realização da Justiça para a comunidade.

O inconformismo e a vontade de mudança e de liderança, por parte dos juízes, manifestou-se ainda, e de uma forma muito vincada, numa outra área, a do organização do território da Justiça e da forma de gestão e administração dos tribunais, através da figura dos juízes presidentes.

Constata-se que, após quase três anos sobre a reforma do mapa judiciário operada pela Lei nº 52/2008 e depois de dois anos e meio de entrada em funcionamento das três comarcas piloto - Grande Lisboa Noroeste, Baixo Vouga e Alentejo Litoral -, são os juízes, e principalmente os juízes integrados em tal experiência, os principais entusiastas - em rigor os únicos entusiastas - desta nova perspectiva de organização do território da Justiça e de introdução, nos tribunais, de critérios de gestão e uma administração de proximidade, geradores de um melhor desempenho.

É por isso que, para os juízes, é pouco compreensível não só a forma como tal realidade tem sido quase que ignorada ou pouco acarinhada, na sua vivência concreta, quer pelo poder político, quer pelo órgão de auto-governo dos juízes.

A tal dificuldade de compreensão soma-se agora uma profunda preocupação pela indefinição sobre o rumo da reforma, ou sobre a sua efectiva concretização, já que a anunciada mudança total do paradigma da matriz territorial, que esteve na base da orgânica de 2008, de NUT III para distrito administrativo, vai gerar impasses, atrasos e novas dúvidas.

A ASJP foi crítica da matriz territorial que veio a vingar em 2008, como está documentalmente provado, mas não podemos deixar de salientar que estas hesitações, recuos e inflexões, na reforma da orgânica judiciária, não permitem obter a eficácia do sistema de Justiça e levam a um sentimento de desânimo.

Num outro domínio, o das leis processuais, procuraram aqui os juízes dar um contributo sério, responsável e criativo para se ultrapassarem os obstáculos e nós górdios dos actuais regimes processuais, de forma que seja possível realizar Justiça em tempo razoável, dando assim cumprimento a instrumentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Temos a noção que o sentimento de ineficácia que está associado a tais regimes processuais, nomeadamente o do processo penal, é desde há muito tempo, e cada vez mais, uma das maiores causas do desprestígio da Justiça.

Aliás, já em 2008, no 8º.º Congresso dos Juízes Portugueses, numa das conclusões aí adoptadas, se alertava, de forma clara e directa, para o facto de que “A legislação processual é uma das principais causas da morosidade da justiça em Portugal, sendo urgente a sua simplificação e flexibilização, designadamente na área cível”.

Não obstante tais conclusões terem sido então entregues a todas as entidades políticas que em Portugal têm responsabilidades na área da Justiça, máxime ao Parlamento e ao então Ministro da Justiça, nada foi feito para simplificar e flexibilizar os códigos de processo, por forma que o juiz tenha possibilidades de gerir adequadamente os ritmos e actos do processo e imprimir-lhes a celeridade necessária.

Só encontro uma explicação para tal.
O poder político e legislativo desconfia dos juízes e não quer atribuir-lhes os poderes/deveres que leis processuais simples e flexíveis lhes dariam para conformar o processo àquilo que ele deve ser: um simples meio de declarar o Direito do caso concreto e não uma forma de o sujeito processual que está interessado em que o Tribunal não decida, ou decida o mais tarde possível, consiga obter este resultado.

Aliás só a essa luz, da desconfiança, é que consigo ler as atitudes de sucessivos governos, de hesitações, aparentes avanços e logo recuos, acerca do processo civil experimental. Com efeito, pese embora análises altamente favoráveis, da própria Direcção Geral de Política de Justiça, sobre a forma como tal regime processual foi implementado nas comarcas onde foi aplicado, e os resultados positivos obtidos, a verdade é que, decorridos cerca de cinco anos sobre a primeira experiência, não passamos para a fase do seu alargamento a todo o País e parece que está prevista a sua morte.

Bom, mas se o Estado, através do poder político e legislativo desconfia dos juízes que tem, então é melhor que claramente diga que o problema é esse e se encontre uma forma ou modelo de recrutar um novo juiz. Porque a sociedade e os cidadãos não podem continuar a ter uma Justiça que não funciona de forma satisfatória, com Juízes desprestigiados e sem as adequadas ferramentas para realizarem, em tempo útil, a Justiça que lhes é pedida e é sua missão realizar.

O documento que o grupo constituído no âmbito do nosso GEOT (Gabinete de Estudos e Observatório dos Tribunais) aqui apresentou hoje, na sequência de um profundo trabalho ao longo de cerca de um ano, pode e deve ser uma excelente oportunidade para despoletar a revisão do regime do processo penal.

As propostas e ideias desse documento, embora sendo propostas de ruptura com o modelo actual, não podem nem devem ser lidas como propostas contra algo ou alguém e também não são propostas fechadas. Esperamos que tais propostas e ideias suscitem a discussão e a análise séria e reflectida (e não reacções epidérmicas ou sistémicas, de quem esta sempre contra qualquer mudança), dos profissionais da Justiça, dos académicos, dos decisores políticos e legislativos. Sem preconceitos e com abertura queremos contribuir para a construção de um novo paradigma de processo penal, que altere a percepção social que hoje existe, a de que só o cidadão comum (o peixe miúdo) é que é apanhado nas malhas da lei, porque esta é demasiado fina ou demasiado larga e os outros cidadãos (os tubarões) rebentam tais malhas facilmente ou nem sequer se deixam capturar por elas.

Creio que será justo reconhecer o esforço genuíno, sério e empenhado com que os juízes encararam os trabalhos deste 9.º Congresso dos Juízes Portugueses, correspondendo assim à expectativa de sua Excelência o Senhor Presidente da República quando, na mensagem de abertura dirigida a este Congresso, afirmava que os “juízes portugueses compreenderam já o alcance do novo tempo e as exigências de cidadania que daí decorrem”.

Se dúvidas existissem elas seriam dissipadas pelas conclusões aprovadas neste 9.º Congresso que evidenciam, de forma clara e em vários domínios, toda a preocupação dos juízes em contribuir para o prestígio da Justiça.

Os juízes portugueses querem, assim e aqui, publicamente manifestar, perante os seus concidadãos, mas também ao poder político e legislativo, na pessoa de Vª Ex.ª, Srª Ministra da Justiça, a sua firme vontade de se mobilizarem para a concretização de tais conclusões, participando construtivamente nas mudanças e reformas que urgem na área da Justiça, para que também assim o Direito contribua para a resolução das Crises.