Creche fora de horas. Medida do Governo facilita abertura à noite e ao fim de semana

Em Portugal há apenas cinco creches a funcionar à noite ou ao fim de semana, mas há várias em construção já com esse objetivo. Mas educadores e psicólogos levantam reticências à medida, e ao impacto que terá nas crianças.

Duas em Lisboa, uma no Porto, uma em Coimbra e uma em Portalegre. É este o registo das creches que estão a funcionar em regime noturno ou aos fins de semana, segundo os dados recolhidos pelo DN junto do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Mas desde que a portaria 190-A/2023 entrou em vigor, em julho do ano passado, há já várias creches em construção com o intuito de funcionar 24 horas por dia. Na verdade, depois da gratuitidade das creches, até aos três anos de idade, proporcionada pelo Governo, assistiu-se a uma procura que esgotou a capacidade de resposta. “Para potenciar esse aumento, foi criado um mecanismo especial para simplificar e agilizar o processo de reconversão automática de salas de Jardim de Infância em salas de Creche, ocupando assim vagas por preencher, resultantes da universalidade de oferta do pré-escolar na rede pública de educação”, explica ao DN fonte do gabinete da ministra Ana Mendes Godinho.

A portaria em causa prevê também a possibilidade de aumentar de forma expedita dois lugares adicionais por sala de creche, “desde que garantidas as áreas mínimas por criança e salvaguardando quaisquer questões de segurança e conforto das crianças”. Com a implementação destas medidas, “foi possível criar mais de 11 mil vagas em creche”, explica a mesma fonte.

Entretanto, em janeiro de 2024, entrou em vigor a portaria que alarga o programa Creche Feliz às creches públicas, o que, segundo o Ministério, permitirá reforçar o número de vagas gratuitas disponíveis. No final de 2023, eram mais de 89 mil as crianças que beneficiavam já da gratuitidade da creche.

A Fundação Pão de Açúcar-Auchan foi pioneira em Portugal na abertura da creche fora-de-horas. Os dois colégios que detém, na Amadora e em Oeiras, funcionam desde as 07h00 da manhã até às 00h30, e também ao fim de semana. Mas neste caso, não foi preciso socorrer-se do tal mecanismo especial ditado pela portaria. “Desde 2010 e 2012, respetivamente, quando abriram, que funcionamos neste horário alargado”, conta ao DN Luís Gaspar Costa, diretor pedagógico da Fundação. Ao todo, os dois colégios são frequentados por 300 crianças, sendo que cada um deles tem neste momento uma lista de espera que ronda as 70.

“O que fizemos foi dar uma resposta aos pais, às famílias que nos procuravam, e que cada vez mais mais trabalham por turnos, em horários tardios ou ao fim de semana”, justifica aquele responsável. Porém, a Fundação tem “regras muito bem definidas, para acautelar excessos que se revelem prejudiciais para as crianças”. Por exemplo, “só podem frequentar o colégio no máximo 11 horas diárias e cinco dias por semana”. Depois de uma diminuição provocada pela pandemia, ambos os colégios conheceram um “boom de procura” na sequência do programa Creche Feliz. Até aos três anos passou a ser gratuito para todos, a partir daí as mensalidades são definidas consoante rendimento das famílias. O valor máximo estipulado pela Fundação termina nos 360 euros.

Luís Gaspar Costa acredita que este é um caminho sem retorno, o de abrir as creches pela noite dentro e ao fim de semana. “É inevitável. Cada vez mais pessoas trabalham nesses períodos e nós somos uma rede de apoio aos pais e famílias”, conclui.

“Perdi o crescimento da minha filha por causa dos turnos”
A notícia de uma creche a funcionar durante a noite há anos que persegue a vida de Carla Valadas, mãe de uma adolescente de 17 anos e de uma menina de apenas três. Operária fabril numa das maiores unidades da Marinha Grande, sabe que já não irá beneficiar da nova creche da IVIMA (a antiga Empresa Industrial do Vidro da Marinha Grande), agora em construção, mas olha para ela como “um bem enorme para muitos colegas”. “Sempre trabalhei por turnos, e posso dizer que praticamente perdi o crescimento da minha filha mais velha. Para que eu pudesse trabalhar, ela tinha que ficar a dormir em casa dos avós”, recorda. Quando nasceu a mais nova, conseguiu passar ao horário diurno. “Mas isso é por enquanto, não é certo que continue assim. Por isso será muito importante que exista essa creche, e que depois as mães e os pais possam ir buscar os filhos e passar algum tempo com eles”.

Uma creche na fábrica para quem vive das fábricas
O presidente da Câmara da Marinha Grande, Aurélio Ferreira, confirma ao DN que o objetivo final da futura creche da IVIMA “é esse, funcionar também no período noturno”. Mas, numa primeira fase, “não vai arrancar assim, como creche de 24 horas”. Quando o autarca chegou à Câmara, em 2021, já o projeto se arrastava. Apesar de começar a ser pensado em 2010/11, as obras só acabariam por arrancar agora, em janeiro de 2024. “A Marinha Grande é uma cidade em que se trabalha 24 horas, com muita gente a fazer turnos, e por isso nós precisamos de uma creche dessas como pão para a boca”, sublinha Aurélio Ferreira. “Estou a pensar nas mães solteiras, divorciadas, sozinhas, que não têm com quem deixar os filhos, muitas vezes. E isso inclusive considero que isso agrava o absentismo nas empresas”, conclui.

O autarca, independente, justifica o atraso com o facto de “em 2018 ter sido adjudicada uma obra, num processo ridículo, em que a própria empresa que a ganhou não a quis fazer, porque o que era necessário nem sequer estava no caderno de encargos”. Segundo afirma, o atual executivo “adequou essa intenção ao que era a nova realidade em termos legislativos, bem como ao edifício”. Trata-se de uma antiga fábrica de vidros, que laborou ao longo de décadas na Marinha Grande, mas fechou portas em 1999. Desde então, ao abandono, o espaço chegou a ser um antro de consumos para os toxicodependentes. E essa é uma memória muito presente na cidade, embora já afastada da realidade há algum tempo. Na ocasião da entrega da obra, o arquiteto Francisco Marques, responsável pela equipa projetista, deu conta desse esforço de recuperação do imóvel efetuado ao longo dos anos. Ainda chegou a ser pensado para centro associativo, mas a ideia de creche sobrepôs-se.

Ao todo, este equipamento esperado há muitos anos vai permitir a criação de 6 salas para 84 crianças, dos 0 aos 3 anos, através de um investimento de 1 017 416,70 euros€ (acrescidos de IVA), comparticipado em 812 700,00 euros€ pelo PRR – Plano de Recuperação e Resiliência e pelos Fundos Europeus NextGeneration EU. O prazo de execução é de 14 meses. Por isso o autarca da Marinha Grande estima que, em 2025, estará a funcionar em pleno. Ainda assim, mesmo com este acréscimo de vagas, Aurélio Ferreira diz que as necessidades da cidade e do concelho “apenas ficam minimizadas”.

Creche de Braga lotada antes de ser construída
Outro exemplo em construção, pensada para funcionar 24 horas, é a creche e berçário do Centro Social do Vale do Homem, em Gualtar, Braga. Quando arrancaram as obras, em outubro passado, já o “Clube dos Pequenos” (assim se vai chamar) contava com 145 inscrições, apesar de poder receber apenas 84 crianças.

Depois de um primeiro concurso que ficou deserto, a empreitada acabou por ser adjudicada à empresa Engimov. O prazo de execução da obra é de 10 meses, e por isso esta Instituição Particular de Solidariedade Social prevê abrir as portas em setembro de 2024.

Quando arrancaram as obras, o presidente da direção admitia, em entrevista à TSF, que “se todas as pré-inscrições estiverem ainda sem lugar, quer dizer que a creche vai abrir já com as vagas preenchidas”. José Pereira explicava ainda que, apesar da parceria com o Município de Braga, que cedeu o terreno, a administração do Hospital de Braga e da Universidade do Minho, “não vão existir vagas específicas para os filhos destes profissionais”. A obra está orçada em 2,3 milhões de euros, sendo que 812 mil euros serão provenientes do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Numa primeira fase, vai criar 30 postos de trabalho.

Uma resposta para os pais. E as crianças?
Este é um daqueles temas que nos obriga a pensar com algum cuidado, na medida em que parece ser mais uma resposta para as necessidades dos pais do que das crianças”. A posição da psicóloga Rute Agulhas (especializada na terapia com crianças e adolescentes) está em consonância com grande parte da discussão que envolve o impacto desta nova medida. “Sabemos que muitas profissões exigem horários que se prolongam até tarde e que muitas pessoas não têm uma rede de suporte social informal (avós ou outros familiares) que permita compatibilizar esses horários com as necessidades das crianças. Estes pais, naturalmente, são confrontados com a impossibilidade em conciliar o trabalho com a prestação dos cuidados aos filhos. Muitos pais deixam de trabalhar por não ter esse suporte, com todas as consequências (económicas e não só) que daí advêm. Na prática, apenas quem tem mais dinheiro consegue gerir facilmente esta situação, pagando a uma empregada que permanece em casa com a criança nos períodos de tempo em que os pais estão a trabalhar”.

No entanto, as reticências levantam-se: “Se pensarmos na criança, rapidamente compreendemos que uma creche noturna não é a melhor resposta para as suas necessidades. As crianças beneficiam de estar na creche, pela socialização e por todas as aprendizagens que a mesma assegura, mas precisam também de tempo com os pais e outros familiares, na sua casa, no seu espaço. Demasiadas horas seguidas na creche, ou mesmo muitos dias seguidos, têm impacto negativo no seu bem estar e na relação de vinculação com os seus pais”, defende Rute Agulhas. É por isso mesmo que as creches com horários mais alargados “ou mesmo a funcionar 24h/dia (por exemplo, na TAP) têm de definir alguns limites – sob pena de as crianças quase passarem a viver lá”.

Em suma, a psicóloga considera que as dificuldades que esta medida tenta colmatar “seriam melhor abordadas se nos focássemos naquela que é a verdadeira questão – como ajudar os trabalhadores a melhor conciliarem a sua vida profissional e familiar?”. E levanta, a propósito, outras questões. “São os tempos de licença de maternidade e paternidade adequados e ajustados às necessidades das crianças e das famílias? De que apoios precisam as famílias?”.

Também a educadora de infância Ana Lúcia Fonseca tem muitas reservas relativamente ao funcionamento de uma creche 24 horas por dia. “Passamos a vida a dizer que as creches e infantários não podem ser depósitos, mas afinal é isso que estamos a criar”, admite esta profissional, com mais de 20 anos de experiência na região de Coimbra, em IPSS’s. “Tenho muitas dúvidas sobre o impacto que terá, para uma criança, ir ‘para a escolinha’ à noite. Ou ao fim de semana. Mas reconheço que, para os pais, sobretudo os que não têm rede familiar, a medida deve soar muito bem. Mais uma vez, nem sempre o mundo ideal dos adultos se cruza com o que deveria ser o apregoado superior interesse da criança”.

Fonte: Diário de Notícias
Foto: Artur Machado/Global