Unidades privadas e sociais vão passar baixas médicas a qualquer doente sem restrições

Lei entra em vigor esta 6ª feira: urgências do SNS, unidades privadas e sociais vão passar baixas médicas. O objetivo é aliviar centros de saúde, mas urgências não vão poder dar baixa a doentes com pulseira azul ou verde. Médicos de família receiam que impacto seja menor. Privados ainda sem acesso à plataforma do SNS.

Nas vésperas de o Decreto-Lei n.º 2 de 5 de janeiro de 2024 entrar em vigor, o que acontece hoje, 1 de março, a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) emitiu uma deliberação onde fazia saber que os médicos dos serviços de urgência não poderão passar baixa (ou Certificado de Incapacidade Temporária - CIT) aos doentes que ali se dirigirem sem referenciação da Linha SNS 24 ou dos cuidados primários ou se forem triados na própria urgência com cor azul ou verde, seguindo a Triagem de Manchester, ou se não possuírem um motivo de exceção nos termos da Portaria 438/2023, de 15 de dezembro. Em qualquer destes casos, ou até se cumprir os três, o utente deve ser orientado para a possibilidade de emissão de uma Autodeclaração de Doença (ADD), que é um atestado de curta duração, três dias que não são remunerados, ou para os cuidados primários para obter o CIT, em caso de necessidade.


Até há dois dias, e segundo foi explicado ao DN pelo vice-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), os médicos dos cuidados primários não sabiam como é que a medida iria funcionar, até do ponto de vista das renovações. Ou seja, “imagine que um utente é operado no privado sai de lá com a baixa, mas depois por qualquer razão tem de a renovar e vem ao centro de saúde, nós teremos acesso à informação sobre a primeira baixa, podemos passar renovações?”, questiona o médico.

A DE-SNS explicou aon DN que toda a “informação sobre o CIT estará disponível para o médico, quer este seja emitido no setor público, privado ou social”, sublinhando que tem estado “a articular com os serviços partilhados do Ministério da Saúde e com as entidades privadas (Associação Portuguesa da Hospitalização Privada) e com o setor social (União das Misericórdias Portuguesas), de forma a preparar tecnicamente a efetivação da medida”.


Em relação ao impacto esperado para esta medida, nomeadamente no número de consultas que poderá evitar nos cuidados primários, a DE-SNS não respondeu ao DN.

Mas na deliberação que emitiu, explicava que as restrições à passagem de baixas nas urgências a alguns doentes são para não “subverter o funcionamento dos serviços de urgência”, pelo que se “torna necessário operacionalizar este alargamento da emissão de CIT de forma equilibrada e conducente a uma melhor utilização dos recursos existentes”.

Restrições à lei é como se "culpabilizassem" utente
Os médicos de família não concordam. O vice-presidente da APMGF, António Luz Pereira, defendeu ao DN que "a medida não faz sentido e nem vai trazer ganhos para o sistema. O utente vai acabar por ter duas consultas, se precisar mesmo de baixa, e são os cuidados primários que vão ter de dar resposta”, argumentando: “Um doente quando vai a uma urgência é porque sente necessidade de ser observado e considera que aquele é o local indicado. E não sabe se vai ser classificado com pulseira azul ou verde.”

Por outro lado, destaca, “há doentes que são classificados com estas pulseiras e que foram ao local certo para serem observados, nomeadamente os que podem ter um problema oftalmológico ou otorrino, por exemplo. Mas se necessitarem do CIT vão ter de regressar aos cuidados primários. Portanto, quanto mais doentes destes recebermos das urgências, menos doentes vemos noutras consultas”.

Para este médico, as restrições agora anexadas à lei vêm, mais uma vez, culpabilizar o utente. E “não se pode estar sempre a culpar o utente por usar o sistema de forma errada ou de se aproveitar para subverter os serviços”, sustentou. Em vez de uma medida com esta, “deve fazer-se um trabalho de proximidade com o utente, aumentando as respostas, para que os serviços sejam usados adequadamente”.

A deliberação da DE-SNS é destinada só ao SNS, em relação ao setor privado e social "até ontem à tarde não foram transmitidas quaisquer recomendações deste tipo”, garantiram fontes oficiais ao DN. O que significa que os médicos destas unidades poderão passar baixas a qualquer doente sem restrições, e sempre que o entendam.


Fonte da Associação Portuguesa da Hospitalização Privada (APHP) referiu que “os hospitais privados estão totalmente disponíveis para colaborar com o SNS e assim dar execução a esta medida”, reiterando que as reuniões tidas até agora com a “DE-SNS e com os Servições Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) tiveram a ver com o desenvolvimento de uma aplicação para que os médicos do privado e do social possam aceder e emitir as baixas. Esperamos que tudo esteja operacional até à data em que a lei entrar em vigor”.

No entanto, algumas unidades assumiram ao DN que só poderão começar a cumprir a lei “a partir de 4 de março e se tudo correr bem com o acesso à plataforma da SPMS”.


As mesmas fontes explicaram ainda que a seleção de doentes de acordo com a Triagem de Manchester não fazia sentido para o setor privado, precisamente por este não ser obrigado “a seguir esta triagem e muitas unidades têm outros modelos”.

Até porque, especifica o vice-presidente da APMGF, “a Triagem de Manchester serve para adequar o tempo de espera” à patologia do doente. “Não é uma triagem para distinguir se é ou não uma urgência”, explica, defendendo mais uma vez que “o que deve ser feito é melhorar a literacia dos doentes para que estes percebam que podem resolver algumas situações em casa e ir só à urgência quando é estritamente necessário”.

Em 2023, foram emitidas mais de 814 mil baixas

Antes de fevereiro de 2004, a emissão de CIT podia ser feito nas urgências, em hospitais ou consultórios privados ou do setor social. Mas a aprovação do Decreto-Lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, veio alterar esta situação, impondo a emissão de qualquer CIT pelos médicos dos cuidados primários, mesmo que estes tivessem sido vistos nas urgências do SNS ou em unidades privadas ou sociais. O mesmo acontecia com a renovação da baixa ao fim de 30 dias caso houvesse essa necessidade. A situação redobrou o fluxo de consultas e aumentou a pressão nos cuidados primários, e há muito que os médicos de família se queixavam.


Se olharmos para os números oficiais divulgados na página da Segurança Social, verificamos que, em 2023, houve 814 041 beneficiários de baixas médicas. Ou seja, no máximo, isto significa que os cuidados primários fizeram mais de 800 mil consultas para emitirem baixas. Em janeiro deste ano, o número já vai em 216 932 beneficiários com CIT, mais do que em janeiro de 2023, que foram 214 322. “Se os cuidados primários poderem ser aliviados com este tipo de consulta já será muito bom”, refere António Pereira.


Recorde-se que a medida - que permitirá a passagem de baixas em “serviços competentes, através de documento efetuado pelos respetivos médicos, designadamente nos cuidados de saúde primários, serviços de prevenção e tratamento da toxicodependência, e cuidados de saúde hospitalares, incluindo serviços de urgência (SU)” - surge no âmbito de outra já tomada, a Auto Declaração de Doença, com o objetivo de desburocratizar os processos e de reorganizar os recursos existentes. Esta última entrou em vigor em maio de 2023 e até fevereiro, tal como o DN noticiou esta semana, evitou mais de 354 mil consultas nos cuidados primários por este motivo.

Fonte: Diário de Notícias
Foto: Global Imagens