Falhas na Lei de Estrangeiros facilitam tráfico de imigrantes

Quinze pessoas foram acusadas pelo MP por crimes de organização criminosa, auxílio à imigração ilegal e falsificação de documentos, na sequência de uma investigação executada pela PJ, que explica como a lei em vigor serve para criminosos explorarem os imigrantes. Neste caso mais de 6000 foram vítimas do esquema.

Seis meses depois de uma operação da Polícia Judiciária (PJ) ter detido seis suspeitos de pertencerem a uma organização criminosa de auxílio à imigração ilegal com ramificações europeias, o Ministério Público (MP) deduziu esta semana uma acusação contra 15 arguidos. No despacho, a que o DN teve acesso, assinado pela procuradora Felismina Franco do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa são expostos exemplos de falhas na Lei de Estrangeiros que permitem a legalização de imigrantes com documentos falsos, a sua exploração e maus-tratos.

Os 15 arguidos, da Índia, Paquistão e Bangladesh, estão acusados pelos crimes de organização criminosa, auxílio à imigração ilegal e falsificação de documentos, sendo que oito deles, já se encontram em prisão preventiva desde 18 de julho passado. A investigação que foi coadjuvada pela Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da PJ permitiu identificar mais de três centenas de transportes em várias estradas europeias, de e para Portugal, envolvendo mais de 6.000 imigrantes ilegais.

Afiança o MP que a maioria das carrinhas foram alugadas no nosso país e que estes transportes eram realizados, “em veículos de passageiros sobrelotados (há um caso descrito em que 21 migrantes viajavam numa carrinha de nove lugares). Além disso, os migrantes foram “muitas vezes vítimas de agressões e maus tratos durante as viagens exigindo elevadas quantias monetárias”. Acresce ainda que “elevado número de cidadãos estrangeiros nesta condição tem conduzido a uma sobrelotação das habitações/estabelecimentos onde pernoitam enquanto permanecem em território nacional, necessariamente com parcas condições de habitabilidade, que implicam riscos de segurança para os próprios e terceiros”.

A investigação foi iniciada em Portugal em fevereiro de 2022, em cooperação com as autoridades judiciárias europeias, designdamente a EUROJUST e a Europol.

Uma lei que o SEF chumbou

Segundo a prova recolhida, a rede operava principalmente em Portugal, França, Espanha e Alemanha, pelo menos desde 2021, com o objetivo de angariar “cidadãos Indostânicos e (Eur)Asiáticos, na sua maioria bengalis, indianos e paquistaneses, mas, também, afegãos, sírios e turcos, que, mostrando-se vulnerabilizados pela precariedade das condições de vida que lhes são proporcionadas nos respetivos países de origem, facilmente acedem a solicitações de promessas de legalização da respetiva permanência em território europeu, mediante a contrapartida de avultadas quantias monetárias”.

O plano terá tido como ponto de partida falhas na Lei de Estrangeiros, devidamente sinalizadas no texto acusatório. “Esta organização criminosa identificou as fragilidades/facilidades da Plataforma SAPA (Sistema Automático de Pré-Agendamento) e tem subvertido e tirado partido das alterações legislativas à Lei 23/2007 de 04 julho, nomeadamente da introduzida pela Lei n.º 102/2017 de 28 agosto, que retiraram o caráter extraordinário do pedido de concessão de autorização de residência (...) transformando-o num procedimento administrativo normal, desburocratizado e livre de controle, sem conseguir detetar as ilegalidades cometidas”, alerta o MP.

Esta alteração legislativa, recorde-se, foi feita já pelo governo PS, com Constança Urbano de Sousa como ministra da Administração Interna e teve um parecer negativo do SEF, resultando na demissão da então diretora nacional, Luísa Maia Gonçalves.

Com aquele expediente, é explicado, “a partir do momento que o requerente de autorização de residência ao abrigo do art.º 88.º ou 89.º submete online a sua manifestação de interesse na plataforma eletrónica SAPA do SEF, com todos os campos preenchidos - com informação verídica ou não, ou sem qualquer informação já que o sistema aceita páginas em branco ou com elementos que em nada se relaciona com o exigido, desde que em formato PDF - o mesmo passa a ficar numa situação que, não sendo a de residente legal em território nacional, é suficiente para obstar ao seu afastamento do nosso país e, se encontrado em situação documental irregular noutro país do Espaço Schengen, o seu retorno coercivo será para Portugal e não para o país de origem”.

136 mil inscritos no portal
De acordo com dados oficiais referidos no depacho, só em 2022 e 2023, apresentaram manifestações de interesse no potrtal SAPA, um total de 136 178 cidadãos do Nepal, Índia, Bangladesh e Paquistão.

A partir do momento em que é feito este registo, assinala o MP, “o processo fica numa lista de espera organizada cronologicamente, sendo “filtradas” por um trabalhador, à data do SEF, atualmente AIMA (Agência para a Integação, Migrações e Asilo), que faz consultas de segurança, verifica os documentos carregados e dá um primeiro parecer (positivo/negativo), que pode demorar até cerca de 2 anos, considerando o número anormal de pedidos, designadamente por parte de cidadãos indostânicos”.

Esta demora foi aproveitada “pelo grupo criminoso, podendo os migrantes estabelecer-se em território nacional, ou em qualquer país do Espaço Schengen”. Com o comprovativo da subscrição da manifestação de interesse na mão, “os migrantes eram novamente transportados para outros destinos do Espaço Shengen, como a Alemanha, a Áustria, a Bélgica, a França, a Holanda, e outros, nos quais pretendem efetivamente fixar domicílio sem que para tal se mostrem documentalmente legitimados”.

Sem verificação de segurança

Alerta ainda o MP neste despacho que o sistema SAPA do ex-SEF – atualmente gerido pela nova (AIMA) - “não faz qualquer consulta de segurança à informação que é carregada pelos particulares, nomeadamente no que concerne ao registo criminal ou medidas inseridas no Sistema de Informação Schengen (SIS II), designadamente as emitidas por outros países Schengen, designadamente para efeitos de não admissão em espaço Schengen”.

Os arguidos “aproveitavam o facto de se tratar de um sistema informático para conseguirem inserir documentos que não eram verdadeiros, ou seja, em que não eram avaliados os ficheiros carregados, podendo tratar-se de folhas em branco, que o sistema vai aceitar e prosseguir para a submissão da manifestação de interesse”.

Os migrantes deste grupo criminoso foram angariados “através de fóruns e plataformas de redes sociais e por intermédio de contactos pessoais em estabelecimentos e locais públicos reconhecidamente frequentados pela Comunidade Indostânica, situados, exemplificativamente, em Lisboa, na Gare do Oriente, no Intendente, no Martim Moniz e na Mouraria, e bem assim nos países de origem onde oferecem a prestação de vasta panóplia de serviços, entre os quais, os de ‘transfer’/transporte e de procuradoria/solicitadoria Ilícitos, que lhes permitem num primeiro momento, entrar de forma clandestina, no Espaço Schengen, por intermédio, designadamente das rotas do Mediterrânio Oriental e/ou dos Balcãs Ocidentais, e no segundo momento verem iniciado um processo administrativo com recurso a documentos falsos com vista à sua regularização documental em Portugal”.

Fonte: Diário de Notícias